Contexto

A praia! A praia é do povo!

Pé na areia, a caipirinha, água de coco, a cervejinha... e muita falsa polêmica (Foto: O Pharol)

Aviso aos navegantes: o mar não está para peixe. Não há agora, como nunca houve, pretensão alguma de mergulho na sempre vazia polarização política do cotidiano. O que se pretende novamente é lançar luzes sobre os fatos. “Praia”, intervenção do coletivo Mercúrio Líquido, tornou-se o foco principal das já acirradas discussões de campos políticos antagônicos em Juiz de Fora.

De um lado, seus defensores, perdidos em textões nas redes sociais, apelam para se preservar a liberdade e a pluralidade de criação. Os muitos que a atacam, por outro lado, retomam os mesmos instrumentos de batalhas recentes e mobilizam problemáticas reais para, longe de combater efetivamente as mazelas que denunciam, demonizar os artistas e estancar as escassas fontes de financiamento cultural.

Ao fim e ao cabo, o que se ambiciona é atacar e vilanizar qualquer forma de criação que amplie a visão sobre o mundo e a vida. Não se permite nenhuma luz que possa indicar caminhos na escuridão. Acode-nos Ferreira Gullar: “A poesia transfigura as coisas, mesmo quando você está no abismo. A arte existe porque a vida não basta”.

“Isso é um atentado contra a família”, esbraveja um político com a imagem dos atores com biquínis e sungas ao fundo. “Tudo isso feito com recursos públicos”, dispara outra futura candidata com dedo em riste. É apenas isso mais uma vez. Tudo mais do mesmo na polêmica pela polêmica. Não há nada minimamente razoável a se discutir.

E sobre a intervenção artística em si, qual é a sua potência, o que só ela produz, o que pode nos dizer? Antes de chegar lá, é bom que se entenda: as pessoas têm o direito de gostar e de não gostar, de querer e de não querer. Não se pode é faltar respeito. É preciso exercitar a tolerância. Não há dúvida, e a história tem sido testemunha, de que, na maioria das vezes, não estamos preparados para certas coisas.

Primeiramente, “Praia” não é uma intervenção em que artistas mostram suas bundas para as pessoas. Limitá-la a uma provocativa erotização canhestra é a senha para atacar o financiamento cultural. A diretora da intervenção, Letícia Nabuco, do espaço Diversão e Arte, trabalha com a diferença entre a maneira de ser na praia e na cidade do interior.

Para ela, o litoral propõe uma expansão, que reflete no corpo e nas relações. A ideia, então, é fazer com que esse sentimento seja refletido em uma praça pública de Juiz de Fora. Para a praia a ser criada, Letícia trabalhou com diferentes corpos, para além daqueles que estão estampados cotidianamente na mídia e replicados nas redes sociais.

Entre os poucos comentários sobre a intervenção que sobreviveram à medonha polarização, foi possível constatar o incômodo pela ausência de corpos novelescos e publicitários. Até mesmo a pretensa polêmica quanto ao financiamento seria resolvida, segundo alguns internautas, se nela tivessem presentes integrantes do reality show Big Brother Brasil.

“A gente que quer tanto uma praia em Juiz de Fora, que a gente possa estar inventando essa praia, que é a que a gente quer: ampla, convidativa, inclusiva, que celebra a diferença. Entendendo que a praia é esse espaço acessível, gratuito, onde todos podem conviver – independente de classe social, identidade de gênero, racialização, sexualidade, tamanho do manequim, idade”, explica a diretora.

“Praia” foi aprovada pelo Edital Pau Brasil, do Programa Cultural Murilo Mendes. A proposta do edital era acolher projetos com ampliação das formas do fazer artístico, em comemoração ao centenário da Semana de Arte Moderna, que aconteceu entre 13 e 18 de fevereiro de 1922. Por esse motivo, muitos dos seus defensores justificaram as polêmicas de agora em analogia àquelas enfrentadas pela turma de Mário de Andrade.

Um erro defender a intervenção com esnobismo intelectual. Primeiro por conta do vazio das polêmicas dos dias atuais. Depois pelo risco de se anular a obra em prol do discurso de autoridade. A descoberta, a busca por significados, é o caminho trilhado em toda a história da arte para se desvendar as criações artísticas. Não há resposta prévia. A capacidade humana de aprender está contida no próprio indivíduo, ensinou Sócrates, o parteiro de ideias.

Outra bobagem da falsa polêmica envolve a ideia do corpo seminu limitado a intenção de choque erótico. Ou se está regradamente vestido ou se é objeto sexual. Não é difícil perceber porque tal reducionismo é sacado a todo momento nos julgamentos majoritariamente de mulheres e LGBTQI+. É a mesma visão lamentavelmente encontrada nos casos de mulheres impedidas de amamentar em público.

O corpo é um signo e um material, ambos poderosos. A arte, notadamente a intervenção “Praia”, se alimenta dessa pluralidade de concepções sobre o físico humano. Por isso, o internauta sugere reação diversa caso os corpos fossem outros. Pelo mesmo motivo, o deputado se atém à bunda do ator de biquíni. Os valores, a inserção social, os impactos culturais mudam quando se trata da pele nua. Ou, no caso, seminua.

Mas não é só isso. Aliás, a intervenção em si não foi nem isso. O foco das vozes que se levantam questiona o uso de recursos públicos para tudo isso. Como se essa situação de contraponto fosse real. Não existe essa coisa de se tirar recursos de uma área para colocar em outra. Existe, sim, um orçamento aprovado pelos vereadores e vereadoras sendo executado, com dotações robustas para áreas absolutamente cruciais.

Nenhum governo em nenhum momento deixará de investir o que se tem que investir nessas áreas, ressalta-se mais uma vez, absolutamente fundamentais e estratégicas, como saúde, educação, transporte público. O que não significa ter que abdicar do investimento na cultura para que isso aconteça.

A ideia de que, na gestão pública, uma área é menos importante e, por isso, deve ceder seus recursos para outra mais importante nada mais é do que o resultado nefasto do atual processo de polarização e criminalização envolvendo de novo o setor cultural. É isso que está em jogo e não uma efetiva constatação da cultura como menos importante. É próprio das sociedades polarizadas querer antagonizar tudo.

É bem verdade que a cultura, no caso de Juiz de Fora, acabou se isolando no prédio da Funalfa, insatisfeita, mas obediente, com um orçamento diminuto disputado a tapa por diversas linguagens, gerando uma série de problemas que inviabilizam o posicionamento do setor nesse lugar estratégico de desenvolvimento econômico e social.

Passou da hora de a Cultura começar a ser vista como um assunto de desenvolvimento econômico, de fazenda e economia, de trabalho e renda, de educação, de saúde, de segurança. Talvez até seja o momento de a gestão municipal da cultura se desencastelar, compondo com todos os demais setores da administração fisicamente.

Também não se pode mais admitir que a classe política, notadamente os parlamentares, alvos recorrentes do moralismo vazio quanto aos gastos do poder Legislativo, continue sendo seduzida pelo discurso fácil, baseado apenas em preceitos tradicionais irrefletidos e ignorando a particularidade e a complexidade da situação julgada.

É um enorme desperdício e uma enorme perda de oportunidade limitar a cultura “ao camarada com uma calcinha enfiada no butão”.