Polytheama

A Semana de Arte Moderna teve mesmo tanta importância?

(Imagem: MCTI)

Mesmo com jornais, revistas e até alguns canais de TV e streaming abordando o tema nos últimos dias, talvez apenas em Juiz de Fora, além de São Paulo, é claro, sejam as únicas cidades do país que conseguiram até agora inserir o centenário da Semana de Arte Moderna na atual cena cultural. A capital paulista, berço do movimento, tem motivos e análises de sobra para fazer.

Já o caso juiz-forano é bem mais inusitado. A Funalfa criou uma linha de financiamento específica dentro da Lei Murilo Mendes para projetos culturais e iniciativas artísticas relacionadas ao tema. Mas bastou a primeira intervenção ser lançada — “Praia” — para a mesma Funalfa, que havia selecionado e financiado as propostas, suspender as demais apresentações. Motivo: polêmica exacerbada.

Sim, houve polêmica, e muita. Não pela qualidade artística da intervenção ou pelo não uso de máscaras por atores e atrizes ou ainda pela ausência de diversidades de corpos representados. Mas pelos biquínis e sungas no sacrossanto Parque Halfeld.

Como bem definiu o professor, diretor de teatro e colunista de O Pharol, Gustavo Burla, “se o que a ‘Praia’ mais queria, como a Semana de 22, era polêmica, conseguiu graças aos que se indignaram ou saíram repetindo a indignação dos outros”. Mas por que a polêmica se tornou marca da Semana de Arte Moderna? Afinal, a Semana de Arte Moderna teve mesmo tanta importância?

A proposta dos artistas e agitadores culturais com a Semana de Arte Moderna era “chocar a moral burguesa”. Para isso, levaram para o aristocrático Theatro Municipal de São Paulo diversas manifestações artísticas, com exposições literárias, musicais e plásticas, para apresentar um novo jeito de fazer arte, quebrando padrões e imprimindo um caráter próprio.

O resultado imediato, com polêmicas nos jornais a cada dia do evento, foi comemorado. Com o término das apresentações e mostras, os modernistas celebraram o sucesso da estratégia de divulgação: provocar os araras. Quem eram os araras? Os jornalistas. Como relataria Mário de Andrade mais tarde: “Os araras morderam a isca. Os araras foram provocados e aí tivemos êxito”.

Essa ousadia de três dias — 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 —, mas que entrou na história como se fosse uma semana inteira, irritou um público ainda não preparado para aquilo chamado de “modernismo” ou de “arte moderna”. Para se ter uma ideia, no terceiro e derradeiro ato do evento, após os sustos dos dois dias anteriores, a aposta era de sobriedade com a apresentação do pianista Heitor Villa-Lobos.

No entanto, para o desespero dos presentes, o maestro apareceu no palco conforme mandava o figurino da época, com fraque de gala e sapato lustrado, mas com uma pantufa em um dos pés. Não houve perdão. O gesto considerado moderno demais e respeitoso de menos lhe rendou uma longa e sonora vaia. Mais tarde Villa-Lobos revelaria não ser nada daquilo, nem modernismo e tampouco desrespeito, mas apenas um velho calo inflamado.

O propósito de chocar, de certa forma, foi alcançado, mas a implosão cultural dos valores oligárquicos não aconteceu. No livro “História do Brasil República: da queda da Monarquia ao fim do Estado Novo”, o professor de História do Brasil da Universidade de São Paulo (USP), Marcos Napolitano, considera que o legado maior do evento não foi o impacto imediato, mas a abertura de espaço para o modernismo, que se alinhava com as renovações trazidas pela modernidade.

A ideia da Semana de 1922 como marco simbólico, com desdobramentos nas décadas seguintes, também é defendida pelo professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Luiz Armando Bagolin. Em entrevista ao jornal da USP, ele aponta como intenção primordial do grupo “implantar no Brasil uma arte moderna que representasse o desejo de demonstrar que a velha nação rural, oligárquica e escravocrata ficara definitivamente para trás”.

Não apenas Marcos Napolitano e Armando Bagolin, mas a maioria dos estudiosos da Semana de Arte Moderna coloca os três dias de fevereiro de 1922, da forma como as gerações atuais aprenderam na escola, como resultado de uma construção posterior. A jornalista e pesquisadora Marcia Camargos, autora de “Semana de 22: Entre vaias e aplausos”, considera o mito da Semana de 22 como resultado “do trabalho de hipervalorização realizado principalmente pelos acadêmicos da USP”.

O mito da “Semana de 22”

A adoção da “Semana de 22” como um marco resulta do processo de construção da memória do modernismo brasileiro, que contou inicialmente com os textos propagados pelos próprios intelectuais e artistas pertencentes ao círculo modernista. “Nesse momento, em que a gente está, em 2022, o que está sendo mais bacana de olhar para a  Semana de 22 é justamente questionar o seu mito”, afirma Heloisa Espada, curadora do Instituto Moreira Salles, em entrevista à Agência Brasil

O evento foi se tornando um marco, segundo ela, com o passar dos anos, num processo de construção histórica.“Sabemos hoje que, por exemplo, imediatamente à semana, nos anos 30, ninguém falava da semana. Essa ideia da Semana de Arte Moderna é uma coisa que também foi construída pela historiografia. E só lá no final dos anos 40, nos anos 50, quando se formam os museus de arte moderna no Brasil.”

Heloisa Espada segue no tempo e se lembra da primeira Bienal, lançada em 1951, ocasião em que aconteceu todo um trabalho de resgate e de reconhecimento público dos nomes modernistas, principalmente de Anita Malfatti e de Tarsila do Amaral, que não participou da semana, mas logo se uniu ao grupo.

O salto temporal da construção histórica do mito da “Semana de 22” é ainda maior, segundo o professor Luiz Armando Bagolin. Isso acontece, segundo ele, sobretudo a partir do início da década de 70, quando a USP comprou o acervo da família de Mário de Andrade e esse acervo foi para o Instituto de Estudos Brasileiros.

Iniciou-se, então, a realização de uma série de pesquisas, que se transformaram em teses de mestrado e doutorado, em duas áreas sobretudo: a área de teoria literária e a área de ciências sociais. Na mesma década, a historiadora de arte Aracy Amaral lançou “Artes Plásticas na Semana de 22”, em um novo impulso na construção da relevância da Semana de Arte Moderna.

As muitas controvérsias

Heloisa Espada é categórica: “debater o modernismo e seus significados é debater os desejos e rumos deste país tão complicado. É uma pauta problemática e fértil”. A começar pelas muitas ambiguidades e controvérsias do movimento. Realizado na então urbana São Paulo, a Semana de Arte Moderna foi bancada pela elite cafeeira, que vivia no interior, em fazendas.

Marcos Augusto Gonçalves, em “1922: A semana que não terminou”, conta que Renata Crespi, herdeira de um dos maiores industriais da cidade, caminhou pelo Theatro Municipal de São Paulo sem saber o que pensar daquelas obras. Sua simples presença revela como o público era não só conservador, mas seleto e abastado.

O tratamento em alguns panfletos era de uma celebração de poucos e para poucos. Guilherme de Almeida, um dos expoentes do grupo de São Paulo e fundador da revista Klaxon, afirmou “éramos os playboys intelectuais de 1922”.

Para Heloisa Espada, relativizar a hegemonia da Semana de Arte Moderna na historiografia permite “olhar para ela a partir do nosso presente e questionar, por exemplo, como o modernismo representou os corpos e se apropriou das culturas afrobrasileiras e indígenas”. Nesse sentido, ela aborda também um outro lado do modernismo.

“Para algumas pessoas, a modernidade seria um projeto de branqueamento do país no início do século. Modernidade também é isso, também tem um lado nefasto. Há quem diga que é mais nefasto que moderno.”

A historiadora Maíra Rosin, em entrevista ao DW Brasil, concorda quanto à necessidade de a importância do evento ser relativizada. “Quando se lê a respeito, parece que todo mundo foi, que foi algo de proporções enormes e que causou grande frenesi. Mas não é verdade: a participação foi pequena, de uma parte da elite. E depois isso virou um verdadeiro fetiche em cima da Semana, como se tivesse sido um evento catártico para o país.”

Nesse contexto, a baixa participação feminina — apenas quatro artistas eram mulheres, dos cerca de 30 que participaram ativamente dos saraus e das apresentações —, a ausência de negros e outras minorias, bem como a não inclusão da arte popular que já vinha sendo praticada no país seriam as principais razões para os que relativizam a importância da Semana de 22. O que se fez ali não era uma arte representativa do todo da sociedade brasileira, mas de uma elite.

Apropriação política

A própria ideia de usar a expressão “Semana de Arte Moderna” para se referir aos três dias do evento foi inspirada na Semana de Deauville, na França, por sugestão de Marinette Prado, esposa de Paulo Prado, um rico intelectual de São Paulo e também um dos mecenas da “Semana de 22”. Sobre a participação de Paulo Prado no evento, Gilberto Freyre escreveria que as gerações futuras se espantariam ao ver um nome associado ao mesmo tempo ao modernismo e ao Departamento Nacional do Café.

Para Heloisa Espada, a ideia de modernidade era “um peixe” que o regime republicano queria vender. “Essa ideia de modernidade, de abrir grandes avenidas e criar cidades mais modernas e que fossem mais salubres, destruiu um passado imperial e colonial ou colocou de lado todo um passado que era conveniente politicamente esquecer naquele momento.”

Na seara política, ela questiona o motivo de nomes como o do escritor e político Plínio Salgado, que fez parte da semana, terem sido “apagados” pela história. “Temos ali a participação do Menotti del Picchia e do Plínio Salgado, figuras que depois se tornaram controversas politicamente, ligadas ao movimento do verde-amarelismo (que se opunha ao movimento pau-brasil de Oswald de Andrade e pregava um ufanismo exacerbado). Depois o Plínio Salgado é expoente do Integralismo (que tinha grande afinidade com o fascismo italiano).

O movimento modernista cairia mais tarde nas graças do Estado Novo, de Getúlio Vargas. De acordo com o professor Luiz Armando Bagolin, o mineiro Gustavo Capanema, ministro com atuação estratégica, assumiu o modernismo como uma política cultural estatal.

“O Estado Novo buscava demonstrar que o povo brasileiro, apesar de ser composto por uma miscigenação de etnias e culturas, deveria se apresentar como um povo, no singular; como uma cultura, no singular; uma arte brasileira, no singular.”

A ideia dos artífices do modernismo de uma arte nacional capaz de mudar o país desencanta quando passa a ser apropriada pelo Estado. “Para o Mário de Andrade e para outros, quando o Modernismo é cooptado, se transforma no establishment ou na arte estatal, na arte defendida pelo Estado — e por um Estado ainda muito conservador — o modernismo morre”, explica Luiz Armando Bagolin.

* Com informações da Agência Brasil.

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