Albert Camus, franco-argelino de Mondovi, gostava muito de futebol. Jogava como goleiro, torcia pelo Rennes e cunhou a segunda frase mais filosófica sobre o esporte: “O que eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem eu devo ao futebol” – a primeira é de Nelson Rodrigues: “A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana”.
Camus escreveu “A Peste” e – salvo erros de memória (normais para quem já cruzou os cabos da Boa Esperança e o das Tormentas) – não fala de futebol no livro. A perplexidade e os heróis ali são de outra cepa: servidores públicos, a princípio (se achando) insignificantes e alçados pelo escritor a um panteão improvável – com tudo que se pode questionar sobre o que seja heroísmo e probabilidade.
Não consta que Antônio da Silva Melo, brasileiro de Juiz de Fora (MG), gostasse de futebol. Usou o tema no discurso de posse na Academia Brasileira de Letras mais para evocar reminiscências e reforçar o lema granberyano da “verdade e da perfeição”. Citou o que teria sido um dos primeiros jogos de futebol em solo mineiro, mas, que na verdade, tecnicamente, não foi uma partida: um dos professores soltou uma bola no pátio do Instituto Granbery e os alunos correram atrás, em êxtase e agonia, chutando a pelota para lá e para cá. Outro professor achou aquilo tudo um absurdo e foi ao reitor, Jhon William Tarboux, reclamar e defender a tese de que os alunos ficariam prejudicados em seu caráter se continuassem com aquela algazarra em torno da bola. O reitor o tranquilizou: “Pelo contrário, é no futebol que se formam os homens” – Contei essa história para duas pessoas, Itamar Franco e Mário Magalhães, e a observação de ambos foi incrivelmente idêntica, com todas as letras: “Tarboux era um homem sábio”.
Silva Melo era um cientista. Pesquisou e escreveu sobre diversos aspectos da ciência médica: nutrição, metabolismo, imunidade, epidemiologia, nefrologia, psicologia e psicanálise. Mas gostava mesmo era de divulgar as necessidades e as vantagens de coisas tão simples como mastigar, o vaso sanitário e… Lavar as mãos.
Ernesto Che Guevara, argentino de Rosário (mesma terra de Lionel Messi), gostava muito de futebol. Jogava de goleiro, como Camus, mas por motivos de saúde: era asmático e, sem fôlego, não conseguia “jogar na linha”, como se diz na Galiléia – linha compreendida como as quatro de um campo de futebol não como a do trem (outra linha cara para os galileus). O mesmo Mário Magalhães que se impressionou com a sapiência do reitor Tarboux conta sobre um jogo antológico, disputado por Che Guevara em Letícia, Colômbia, nos tempos das viagens de motocicleta – outros acrescentam que próximo ao campo, nesse confim de mundo (tríplice fronteira Colômbia/Brasil/Peru), havia uma colônia de leprosos, motivo da visita de Guevara.
Camus morreu num desastre de carro, em 1960; Guevara foi assassinado em 1967, e Silva Melo se foi em 1973. Se vivos, hoje estariam impressionados com o futebol e a Peste – e de como ainda se joga futebol, apesar da Peste. Camus e Guevara talvez colocassem os jogadores atuais como gladiadores modernos – e necessários. Silva Melo não: pregaria com ardor o distanciamento social.
João Cabral de Melo Neto, brasileiro de Recife (PE), também gostava muito de futebol. Jogava de volante (na época center-half) e chegou a ser campeão juvenil pelo Santa Cruz, time de preferência de sua mãe – embora ele mesmo torcesse pelo América (PE). Citava outras pragas, mas poderia ser a desses tempos sombrios: “Como aqui a morte é tanta, vivo de a morte ajudar”.