Olga Kovalenko, como ela mesma se apresenta, é uma “russinha” que estuda o idioma português e a cultura brasileira. Durante quase dois anos, esteve no Brasil para trabalhar como intérprete em uma empresa americana e, na última semana, voltou para a Europa. Descobri por acaso seu canal no Youtube, quando ela chorava ao ouvir “La Belle de Jour”, de Alceu Valença e, não por acaso, acessei locais da memória para os quais eu já tinha esquecido o caminho. Olga posta vídeos reagindo a músicas brasileiras que escuta pela primeira vez e a descobertas de fatos relacionados à história do país. Também comenta suas impressões sobre nossos hábitos cotidianos, natureza, comidas e outros detalhes que aguçam sua atenção, como, por exemplo, a conexão dos brasileiros do interior com a terra, o cultivo e os animais.
Pelos sentimentos compartilhados e pelo olhar apurado da russa, fiquei me perguntando quando parte de nós deixou de ter orgulho pelo que somos? Por que sentimentos tão bonitos tornaram-se “cringe”? O que nos levou a ser engolidos por um tsunami de narrativas de ódio e ignorância? Às vezes é bom parar e lembrar que somos do país de Tom Jobim, Elis, Alceu, Zé Ramalho, Luiz Gonzaga, Cazuza e tantos talentos cujas obras provocam um turbilhão de sentimentos em quem ouve, inclusive e talvez mais em estrangeiros. E que uma boa parcela da nossa população ainda é amável, hospitaleira e solidária, mesmo por gestos que nem nos damos conta.
Tudo bem, a figura do brasileiro cordial não representa toda a sociedade, e inúmeros problemas ainda precisam ser encarados de forma mais incisiva e definitiva. No entanto, não há como negar nossa rica diversidade de ambientes e “gentes” e o norte de liberdade cujo inevitável destino é ser expandido para todas as classes, raças e gêneros. Mesmo em meio a desigualdades terríveis, tínhamos até um tempo atrás uma teimosa e genuína esperança e, lentamente, caminhávamos rumo a uma direção interessante. O que aconteceu? Perdemos tudo isso ou ainda somos, mas estamos cercados e cerceados?
Em algum momento, com intenso apoio popular, um grupo estridente e orgulhoso de sua própria idiotia tomou as rédeas e consolidou narrativas estapafúrdias de nossa história.
Em 2018, o colunista do portal 247, Kauan Von Novack, visitou países, outrora livres e grandes, que se curvaram à ignorância e a governos intolerantes. Polônia, Filipinas e Turquia tinham então seus povos aprisionados em sistemas de medo, supressão de direitos e perseguições a indivíduos e entidades. Uma semelhança chamou atenção de Novack. Nos três países, ninguém sabia explicar ao certo quando as democracias deixaram de existir em sua plenitude, quando os direitos começaram a ser retirados e, o principal, como tinham chegado até ali. Culto à personalidade do presidente, empoderamento de assassinos de opositores, ataques a instrumentos de preservação da cultura e da história, e precarização das relações trabalhistas, com extinção de direitos básicos, mostravam, de forma assustadora, comportamentos idênticos. Mas havia algo nas entrelinhas. É óbvio que tais governos potencializaram e investiram nas ferramentas de opressão; porém com respaldo de parcela expressiva de suas populações.
No Brasil, as semelhanças não são coincidência. Em algum momento, com intenso apoio popular, um grupo estridente e orgulhoso de sua própria idiotia tomou as rédeas e consolidou narrativas estapafúrdias de nossa história. Governos passam, governos caem, mas, quando a tempestade passar – e vai passar -, como lidar com essa massa tão representativa do brasileiro não cordial? Existe, claro, toda uma lógica política e institucional que pode e deve restabelecer relações digeríveis dentro do sistema público em suas macrodimensões. Mas cada cidadão também tem um grande poder em suas mãos e isto envolve não sucumbir.
Durante os últimos anos, temos perdido conexões com nossas raízes, com outras pessoas e com a gente mesmo. Decepções em sequência nos afastam, nos enfraquecem e nos tiram aos poucos nossa capacidade de espanto. Sentimo-nos anestesiados, sugados. Precisamos reagir e esta reação deve começar dentro de cada um. Não podemos ter vergonha da cordialidade que ainda muitos têm. É fundamental recuperar o protagonismo de nossa solidariedade e a espontaneidade de nossas emoções, fazer parte, sentir-se parte viva da floresta que derrubam, do mar que poluem, das montanhas que explodem. Reconectar para resistir. Transformar tristeza em luta, lamento em ação, revolta em força, sem esquecer que nenhuma utopia sobrevive em corpos estéreis de bons sentimentos. Que as lágrimas de Olga nos sirvam de inspiração.