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As Olimpíadas da brasilidade

Hebert Conceição e Isaquias Queiroz exibem suas medalhas de ouro (Foto: Miriam Jeske/COB)

Ao fim de mais um ciclo olímpico, a diversidade ditou o tom da participação brasileira, compondo toda uma representatividade de cor, gênero, religião e até de idade, como também evidenciou nossas expressões regionais. Uma riqueza de perfis que estampa aquilo que temos de melhor, as nossas variações, por vezes tão menosprezadas e discriminadas no dia a dia, quando não, acrescidas de uma dose cruel de estupidez e violência.

O Nordeste deu um show e mostrou a uma parcela da high society sudestina, arrogante, prepotente e preconceituosa que, entre as várias virtudes de seu povo, uma delas é o esporte. Se a Confederação do Equador de 1824 tivesse logrado sucesso, hoje o Nordeste seria independente do Brasil. Ficaríamos bem abaixo na classificação geral, já que das 13 medalhas de ouro e prata, seis foram amealhadas por atletas nordestinos. Isso sem contar a medalha de ouro da equipe de futebol masculino, que tinha como capitão o baiano Daniel Alves.

Só para lembrar, Isaquias Queiroz da canoagem (ouro), Ana Marcela da maratona aquática (ouro), Hebert Conceição e Beatriz Ferreira do boxe (ouro e prata) são baianos. Ítalo Ferreira do surfe (ouro) é potiguar, e Rayssa Leal do skate (prata), maranhense. Aliás, se a Bahia fosse hoje uma República independente, terminaria bem os jogos, comparada a realidade sul-americana e até de alguns países europeus, ostentando três medalhas de ouro e uma de prata. O COB de lá seria o Comitê Olímpico da Bahia.

O Brasil bateu o recorde em medalhas nesta edição, 21 ao todo, sendo 7 de ouro. Êxito alcançado justamente no momento mais duro de nossa história recente, com mais de 563 mil mortes causadas pela Covid-19, 14 milhões de desempregados, aumento da miséria, milhares de famílias sucumbindo à fome, com os preços dos alimentos e dos combustíveis corroendo a renda do trabalhador. Entretanto, com todos os problemas do dia a dia, tivemos em nossos atletas um alento nas frias noites, madrugadas e manhãs no decorrer das últimas semanas. Enquanto no outro lado do mundo, em suas competições, lutavam para elevar o nome do país, do lado de cá, episódios grotescos de uma crise institucional eram por mais uma vez protagonizados pelo presidente da República cujo projeto de governo é acabar com o país e promover a sua manutenção no poder, de preferência por vias ditatoriais.

Mulheres e homens que ascenderam ao pódio nestas olimpíadas representam a realidade da grande maioria dos atletas brasileiros, que não contam com grandes salários, ostentação, mídia e patrocínios vultosos. Vide o que Bruno Fratus da natação publicou em sua rede social, criticando a postura dos jogadores da Seleção Brasileira masculina de futebol ao receberem a medalha de ouro sem o uniforme oficial do COB.

Muitos atletas alcançaram a primazia de participar dos jogos olímpicos sem contar com muito financiamento, pouco apoio estatal ou privado, ou sequer estão empregados por algum clube. No contexto da pandemia a coisa piorou. Adaptaram locais de treino e improvisaram aparelhos, além de terem de contar com a ajuda dos familiares e amigos próximos para manter a rotina de treinamentos e ouso dizer até mesmo contribuir com vaquinha. Tudo para tornar realidade o tão sonhado projeto dos jogos olímpicos.

Filhas e filhos de mães e avós solo, da periferia, são capazes de desajustar, sim. De desajustar o sistema opressor e desigual que enfrentam e viver uma vida digna como qualquer cidadã ou cidadão brasileiro.

Tanto se falou em superação, em persistência, determinação e luta para chegar a Tóquio, e conseguiram. Por isso mesmo, é que representam exatamente a cara dos brasileiros, num país em que muitos governantes tratam o esporte e os atletas como a mesma desfaçatez que tratam a educação, o meio ambiente, a cultura, o patrimônio, os trabalhadores, os aposentados e os professores. Só para servir de exemplo, em setembro de 2018, no calor da campanha eleitoral, o vice-presidente Hamilton Mourão disse que casa de mãe e avó solteira era “fábrica de elementos desajustados”. Eis que agora a graciosa ginasta Rebeca Andrade, filha de mãe solo, nos deu duas medalhas olímpicas, comprovando exatamente o contrário, e que toda pessoa sensata já sabe. Filhas e filhos de mães e avós solo, da periferia, são capazes de desajustar, sim. De desajustar o sistema opressor e desigual que enfrentam e viver uma vida digna como qualquer cidadã ou cidadão brasileiro.

Enquanto torcíamos por nossos atletas na madrugada, os trabalhos em Brasília retornavam do recesso a todo vapor no seu afã para descontruir o país. Ao longo da semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou a privatização dos Correios; Artur Lira, presidente da Casa, contrariando decisão da Comissão Especial sobre o voto impresso, passa o trator e submete o texto ao plenário; os ataques do presidente aos ministros do STF e às urnas eletrônicas serviram para alimentar ainda mais sua sanha golpista e seu desprezo pelo Estado Democrático de Direito.

De Brasília não se pode esperar muita coisa fora do roteiro que já vem sendo escrito desde 2019, de ataque constante às instituições, de gabinetes do ódio e Fake News, de militarização sistemática da estrutura administrativa e governamental do Estado, de escândalos seguidos de corrupção, agora mais evidentes com as descobertas da CPI da Covid. Perdendo sustentação política e apoio popular, Bolsonaro teve que vender a alma ao Centrão como última cartada para tentar sobreviver politicamente dentro dos limites da legalidade e obediência às regras democráticas do Estado de Direito. Se falhar, o plano seguinte pode vir a ser as vias golpistas.

Enquanto isso, de lá do outro lado do mundo nossos atletas lembravam do sofrimento dos brasileiros e dedicavam seus triunfos às famílias enlutadas pelas perdas da pandemia. Obrigado, Isaquias Queiroz e Hebert Conceição por, num momento máximo da glória de um atleta, serem sensíveis ao sofrimento do povo que estavam representando. Afinal, eles fazem parte de povo brasileiro, se enxergam nele, experimentam a dor e a alegria de quem nasce nesse país sendo pobre e trabalhador assalariado. Sabem exatamente o significado do jargão “sou brasileiro e não desisto nunca”. Muitos atletas como eles cresceram nas quebradas das periferias, brincando nas praças e ruas dos bairros populares, estudaram em escolas públicas, precisaram do SUS, das políticas de assistência e proteção social e hoje podem exercer a profissão de desportistas graças ao Bolsa Atleta.

Por fim, expresso aqui minha gratidão aos atletas brasileiros, e em especial às mulheres. Das dezenove medalhas, elas conquistaram nove, 41% do total, sendo três de ouro, uma a menos que os homens. A melhor marca da história. De Maria Lenk, a primeira atleta mulher a disputar os jogos olímpicos pelo Brasil em Los Angeles 1932, passando por Melania Luz, a primeira mulher negra a competir em uma olimpíada pelo país em Londres 1948, e tantas outras que seguiram até chegarmos às primeiras medalhas em Atlanta 1996. Em Tóquio a delegação feminina representou 49% do total de atletas, e tem tudo para chegar a 50% daqui a três anos em Paris. As atletas do Brasil merecem toda a nossa reverência, carinho e respeito, merecem estar sempre no ponto mais alto do pódio. Nas modalidades garra, carisma, personalidade, simpatia, força e determinação todas elas são medalhas de ouro.  

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