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A Aids e o bolsonarismo

Ilustração: Ana Montez (Coordcom/UFRJ)

A Aids e o bolsonarismo têm muito em comum, mas também muitas divergências. Provavelmente, quem lê esta coluna sabe explicar o que é cada um, mas quem não é frequente por aqui pode se esclarecer e entender ambos um pouco melhor, principalmente se tem alguma noção sobre um dos dois.

Pra começar, nenhum dos dois mata por si. Ninguém morre por ser soropositivo, como ninguém morre de bolsonarismo. Atualmente, o HIV, ou “vírus da imunodeficiênica humana”, pode, com os tratamentos disponíveis (e no SUS, no caso do Brasil!), ficar anos indetectável, uma vida inteira. Já a Aids, ou “síndrome da imunodeficiência adquirida”, é o estágio mais avançado da infecção por HIV, que surge quando o paciente é vitimado por infecções oportunistas que se aproveitam da queda de imunidade. O bolsonarismo também não mata, mas desencadeia fome, miséria, intolerância, e violência, que matam. E é igualmente usado por oportunistas.

Muito do que ainda se diz sobre Aids é fruto de desinformação. Nos anos 1980, falava-se que era o câncer gay, porque teria supostamente nascido da promiscuidade homossexual. Esse tijolo de preconceitos tem várias menções nos depoimentos colhidos pela equipe coordenada por Fausto Wolff e publicados no livro Rio de Janeiro: um retrato. São falas de moradores da Cidade Maravilhosa sobre o cotidiano daquele tempo, segunda metade da década. Muito se aprendeu sobre Aids e preconceito desde então. Quer dizer, sobre preconceitos, talvez um pouco menos, porque o bolsonarismo também é fruto de desinformação.

Uma pessoa soropositiva pode ser abraçada, convidada pra jantar, usar o banheiro da sua casa, ser querida por você. Nada disso te prejudica ou te coloca em risco de contrair o vírus. Pelo contrário, faz bem pra você e pro outro, pois afeto é um grande remédio pra aumentar a imunidade. Uma pessoa com bolsonarismo, porém, deve ser evitada em todos esses contextos e, se lhe falta afeto (provavelmente muito), tenha cautela com o tipo de reciprocidade, pode haver contágio.

Uma das formas mais comuns de contágio do HIV é pela relação sexual. Não é a única e há o emblemático caso do Betinho, o “irmão do Henfil” da música, sociólogo criador do programa Fome Zero. Hemofílico, contraiu o vírus, assim como os irmãos, por uma transfusão de sangue. O rigor nas doações sanguíneas passou a ser muito maior desde então e, sobre o sexo, camisinha existe pra ser usada, sem desculpa. O bolsonarismo, porém, é mais transmissível que Covid: vem pelo ar, pelos meios de comunicação, pela família, pelas conversas em diferentes contextos sociais. Sem camisinha ou máscara como preventivos, os cuidados são mais difíceis, porque passam por senso crítico, desenvolvido através de livros, conversas mais aprofundadas e educação de qualidade. É a desinformação mencionada acima que permite o contágio.

Uma das palavras importante pra lidar com a Aids é a confiança. Confiar no outro, e aqui o contexto é um relacionamento duradouro, é importante. Testes podem ser feitos e, numa relação transparente, a ficha limpa de cada um está dada, sejam felizes pra sempre. Bolsonarismo não combina com confiança, transparência, ficha limpa e felicidade. Nem com relacionamento duradouro, porque o país não sobrevive por mais quatro anos com esse tipo de condução no executivo.

Por décadas se fala da cura da Aids. Especula-se que laboratórios farmacêuticos não se interessam por isso, ou perderiam grande fonte de lucro. Sabe-se que não há uma Aids, mas várias formas de ação do vírus, assim como vários tipos de vírus (a Covid nos ensinou sobre isso, já que a mídia perdeu interesse na Aids faz tempo, o que explica aumentos no contágio por desinformação, outro ponto em comum com o bolsonarismo: mídia omissa). Há milênios se fala na cura de pensamentos como o bolsonarismo. Especula-se que grupos específicos se interessam em manter esse tipo de pensamento, ou perderiam grande fonte de lucro. Sabe-se que não há um bolsonarismo, mas vários, e que muitos podem ser superados.

A pauta deste texto foi dada pela Morte, irmã do Sandman, que já foi assunto por aqui. Numa história de 1992, intitulada A Morte fala da vida e encartada em diversas revistas da DC Comics, a personagem explica aos leitores o que é a Aids e como fazer pra se prevenir. Talvez seja necessário, hoje, desenhar e colorir pra explicar a 30% dos eleitores brasileiros que estão doentes.

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