Aos 17 anos, o jovem Roberto P. Hirth avistou uma figura renomada das letras saindo do consultório médico e resolveu pedir o contato para a secretária. Era o ano de 1982, na sala de espera numa clínica no Jardim Botânico, zona Sul do Rio de Janeiro. No dia seguinte, o então estudante, apaixonado por literatura, resolveu ligar e, para sua surpresa, foi atendido de prontidão. Mas o que ele não esperava era ouvir, do outro lado da linha, uma pergunta tão mineiramente desconfiada: “Quem quer falar com Carlos Drummond de Andrade?”.
“Imagina como eu não fiquei com aquela resposta?! Era um adolescente determinado a entrevistar o poeta do qual tanto se ouvia falar na escola”, conta Roberto, atualmente um empresário entusiasta da gastronomia carioca.
Em resposta à indagação de Drummond, o estudante respondeu que queria uma entrevista com o escritor, que sugeriu: “Você me traz as perguntas que eu te entrego por escrito.”
“Levei até a portaria do prédio dele em Copacabana, e fui lá buscar três dias depois. Ele deixou as respostas datilografadas num envelope com o porteiro, morava na altura do posto 6”, conta Roberto, que à época era morador da Rua Marechal Mascarenhas de Morais, também em Copacabana, próximo ao posto 3.
Roberto inicia a entrevista perguntando o que, para Drummond, caracteriza um bom poema e termina querendo saber a opinião do poeta sobre o interesse dos jovens pela poesia. Foram oito questões. O entrevistado, por sua vez, desconversa sobre perguntas sobre as características da sua obra, evoca Manuel Bandeira, escreve palavras como “demasiado” e “sucede” e encerra com uma assinatura a punho.
No dia do contato visual na clínica médica, Drummond estava vestido de maneira sóbria e com seus óculos habituais, lembra Roberto Hirth. “Camisa de botão, calça e cinto.” Um mero detalhe não fosse este um modernista avesso a entrevistas. O autor de “José”, “Resíduo” e “A morte do leiteiro” era um homem reservado, cioso da sua intimidade e evitava contatos pessoais.
Das raras conversas com jornalistas, a última – por razões óbvias – entrou para a história. Em 15 de agosto de 1987, precisamente dois dias antes de sua morte, Carlos Drummond de Andrade falou com Luiz Fernando Emediato, do “Estado de S. Paulo”, no seu mesmo apartamento de Copacabana.
Dando um salto no tempo, o Pharol teve acesso ao registro da conversa inédita de 1982, em posse de Roberto P. Hirth, e divulga seu conteúdo para celebrar os 120 anos de Drummond comemorados neste dia 31 de outubro de 2022. A legítima entrevista-saideira se considerarmos todas as outras anteriormente publicadas. (Confira aqui o documento original e a transcrição abaixo).
Hirth – Para o Sr., o que caracteriza um bom poema?
Drummond – A combinação perfeita de forma e conteúdo: a ideia ou a emoção expressa em forma artisticamente realizada.
Hirth – Sr. acha que a poesia deve ser um veículo das ideias políticas e ideológicas do autor?
Drummond – Não compreendo a poesia como veículo de qualquer coisa que não seja puramente… poesia. Se o poema gira em torno de um tema político ou ideológico – e isto é concebível, pois há um infinito temas, todos cabíveis em poesia – nem por isso deve deixar de impor-se como poema, isto é, como produto artístico, válido por si mesmo. A questão é que, na maioria das vezes, os poemas ditos sociais ou políticos não passam de meros discursos pretensiosos, despidos de qualidade estética.
Hirth – William Wordsworth disse que a poesia “é um jorrar espontâneo de emoções relembradas em tranquilidade”. O Sr. está de acordo?
Drummond – Esta é uma entre milhares de definições de poesia, todas certas mas insuficientes. Tanto a emoção ganha em ser “reconstituída” com tranquilidade, como na transcrição verbal imediata, sob o fogo direto. Não existe, que eu saiba, definição absoluta de poesia. Manuel Bandeira divertiu-se, durante algum tempo, colecionando as inúmeras tentativas nesse sentido.
Hirth – O Sr. encontra, através de nossa evolução poética no período Modernista, uma linha evolutiva harmoniosa, com tendências que se vêm reproduzindo ininterruptamente e características permanentes?
Não vejo sequência harmoniosa, ou evolução, nos domínios da criação literária em geral. Experimentam-se novas técnicas, eis tudo. Virgílio continua atual, e muitos poetas de hoje estão fadados ao esquecimento, que é também uma lei literária.
Hirth – Como o poeta sempre está se renovando, é difícil traçar as características de sua poesia. Como o Sr. resumiria esse ciclo evolutivo de sua produção?
Drummond – Sinceramente, não me considero habilitado a julgar meu próprio trabalho. Estou demasiado envolvido nele para tentar analisá-lo.
Hirth – De onde vem a sua grande capacidade de exprimir suas ideias através da prosa e poesia? O Sr. acha que todos nascem com essa capacidade?
Drummond – Prejudicado, em parte, pela resposta à pergunta anterior. Quanto à questão de ordem geral, acho difícil concluir alguma coisa sobre o problema científico da vocação. Parece-me que as aptidões criativas independem, até certa medida, de cuidados e condições especiais de estímulo, havendo mesmo casos em que elas se desenvolvem em ambiente hostil. Cedo a palavra aos geneticistas e psicólogos.
Hirth – O que o levou, nos últimos anos, a se dedicar mais às crônicas do que à poesia?
Drummond – Dedico-me à poesia e à crônica jornalística desde a mocidade. Sucede que a primeira eu cultivo para meu próprio gosto, e a segunda é praticada profissionalmente, como meio de vida. Mesmo que não tivesse parte do meu tempo reservado ao jornal, eu nunca seria um poeta muito produtivo. Costumo dizer que a poesia é a linguagem de certos momentos, e a prosa a linguagem de 24 horas por dia.
Hirth – Como o Sr. vê, na última década, o interesse dos jovens pela poesia?
Drummond – Não tenho elementos para avaliar o grau de interesse dos jovens pela poesia. Não há estatísticas sobre o número de consumidores jovens desse gênero literário. Quanto ao fato de muitos adolescentes escreverem versos, creio que sempre foi assim e continuará a ser, pois esta é a maneira comum de manifestarem anseios e reações sentimentais em estado puro, isto é, sem crítica raciocinante. São versos a que naturalmente falta conhecimento técnico, e na maioria dos casos, com o passar do tempo, são abandonados e esquecidos pelos seus autores.
Encontros, homenagens, livraria e novos títulos
Ao longo deste ano, o poeta de Itabira vem sendo lembrado Brasil afora em razão dos seus 120 anos. Drummond e sua relação com o meio ambiente foram o tema do 30º Paixão de Ler, festival literário 100% gratuito da Secretaria Municipal de Cultura do Rio, cuja conferência de abertura reuniu o músico, compositor e ensaísta José Miguel Wisnik num papo inédito com o escritor, ambientalista e líder indígena Ailton Krenak.
O Grupo Editorial Record anunciou o lançamento, até o fim deste ano, de 11 títulos de Drummond. Este mês (outubro), são cinco novidades nas prateleiras (veja lista abaixo). “As novas edições chegam acompanhadas de uma inédita cronologia na época do lançamento de cada um dos títulos que ajuda a entender o contexto em que a obra foi escrita”, informa Rafael Sento Sé, gerente de relações públicas com a imprensa.
Além das obras, há uma série de encontros literários em homenagem a Drummond, como o Flitabira, realizado na cidade natal do poeta de hoje até 06/11, e o Ciclo Educacional Record, voltado para professores e profissionais de educação.
Em São Paulo, está prevista a inauguração de uma livraria chamada Drummond, no Conjunto Nacional.
Lançamentos de Drummond, Editora Record
“As impurezas do branco”
Extremamente atual mesmo meio século após sua publicação, “As impurezas do branco” retorna em novo projeto, com posfácio de Bruna Lombardi.
Em 1973, Drummond já era tido por muitos como um autor clássico. E talvez ele próprio, apesar do ceticismo e da ironia que o caracterizavam, já se sentisse um pouco assim. O “amor é privilégio de maduros”, escreveu o poeta. Verso de quem sabia ler muito bem a sua época, o fim de um século em que até o sentimento amoroso exigia ser comunicado, noticiado, desentranhado em palavras, as tais impurezas a perturbar o branco silencioso do papel.
Meio século depois de sua publicação, este livro ainda ressoa. E quem o quiser ler hoje, no Brasil — “essa parte de mim fora de mim / constantemente a procurar-me” —, certamente irá se surpreender com sua atualidade estética e política.
Em “Diamundo”, Drummond canta as “24h de informação” a que os “jornaledores” estariam expostos. E enfileira alguns dos assuntos com que éramos e continuamos sendo bombardeados diariamente: a especulação financeira e imobiliária, o sensacionalismo midiático, o culto à celebridade, o colapso do clima, a escravização dos trabalhadores rurais no interior do país, as consequências do garimpo na Amazônia, a crise dos combustíveis, a cultura dos remédios, do automóvel, do crime.
Para Drummond, todos estes temas se misturavam por artes do deus Kom Unik Assão, entidade cada vez mais divinizada, a unir e transformar tudo à sua volta. O amor e o desamor, a idade e a memória, a “dangerosíssima viagem de si a si mesmo”, a saudade dos amigos e a profunda admiração pelos artistas de sua terra, este “lugar de muita miséria”, “pouca diversão” e uma única certeza: é também da poesia drummondiana que emana a dor que o poeta, de algum modo, queria que nos irmana se.
“A rosa do povo”
Um dos livros mais modernistas e políticos de Drummond, “A rosa do povo” retorna em novo projeto, com posfácio de Affonso Romano de Sant’Anna.
A poesia de Carlos Drummond de Andrade não precisa de manual crítico para ser apreciada. A obra se basta. Mas em se tratando de “A rosa do povo”, o contexto histórico em que o livro foi escrito e publicado ajuda a dar ainda mais sentido aos 55 poemas que compõem essa obra-prima, publicada em 1945, quando o poeta completou 43 anos.
Escritos sob o impacto da Segunda Guerra Mundial e da ditadura do Estado Novo no Brasil, os versos trazem grande carga “politizada”, traço que já aparecera em livros anteriores, como Sentimento do mundo e José. É assim com o conhecidíssimo “A flor e a náusea”, onde a beleza (ou seria a poesia?) brota dos lugares mais hostis, em um tempo de desesperança, ou em “Nosso tempo” — “tempo de divisas, tempo de gente cortada” —, tão atual com suas poderosas imagens que chega a desconcertar o leitor. Sem esquecer da ode “Carta a Stalingrado”, em que o poeta deixa bem claro seu humanismo diante da barbárie.
Mas Drummond era um poeta completo. Para além do tom desesperançoso daquele momento, ele escreveu textos metalinguísticos (“Nova canção do exílio”), poemas de amor não correspondido (“O mito”) e reflexões existenciais (“Morte no avião”). Há ainda a pérola “Caso do vestido”, uma “narrativa” épica (meio rodriguiana), sobre traição e desonra, que o Nobel Bob Dylan certamente gostaria de ter escrito.
No fim, o que prevalece mesmo é a poesia maior de Drummond, com sua fé inabalável no ofício da escrita: “Contempla as palavras, cada uma tem mil faces secretas” (“Procura da poesia”). Neste livro, elas têm mesmo.
“O gato solteiro e outros bichos”
Em poemas, crônicas e contos publicados em jornais e livros, esta edição ilustrada reúne o Drummond defensor da natureza e dos animais.
“Quando é dia de futebol”
Antologia de contos, crônicas e poemas sobre a paixão pelo esporte compartilhada pela nação e o poeta, Quando é dia de futebol retorna em novo projeto, com posfácio de Pelé.
Logo no início desta antologia, Drummond anuncia em que campo ela será disputada: “Futebol se joga na alma.” Para o poeta, que via em todo torcedor um ameaçado de morte, o esporte definidor do brasileiro estaria intimamente ligado à ideia de mistério. Magia e ilusão eram palavras que lhe caíam bem na hora de estabelecer a intangibilidade de nosso amor pela bola. Mas Drummond entendia que o futebol expressava sobretudo uma emoção política. Nossas vitórias, escreveu, abriam os olhos do povo para suas “negadas capacidades de organização, persistência, resistência, espírito associativo e técnica”. Mais que isso: permitiam à nossa gente que descobrisse a si mesma.
Organizados cronologicamente, acompanhando as copas que nossa seleção venceu ou deixou de vencer entre 1954 e 1986, os poemas, crônicas e cartas reunidos neste livro também analisam os conturbados anos que precederam e se seguiram ao golpe de 1964. A Tostão, Zagallo, Gérson e Rivelino misturam-se personagens de outros certames, como Médici, Costa e Silva, Geisel e Figueiredo. A “passional mitologia da copa”, Drummond sabia, era uma atraente isca ideológica. O futebol, afinal, “às vezes regressa ao primitivismo, com escalas pelo nacionalismo zangado”.
Há também duas seções dedicadas ao gênio de Garrincha e Pelé, dupla que o autor considerava uma espécie de antítese do Jeca Tatu de Monteiro Lobato. No comovido posfácio que escreveu para esta obra, aliás, Pelé faz questão de retribuir a afeição que o escritor sempre lhe dedicou: “O difícil, o extraordinário, não é escrever mil textos, como Drummond. É escrever um texto como Drummond.”
“A viola de bolso”
A lista de lançamentos inclui preciosidades que estavam há tempos esgotados, como Viola de bolso, lançado originalmente em 1952 como parte da coleção Os cadernos de cultura, do Ministério da Educação e Saúde, e relançado em 1955 pela José Olympio com o título Viola de bolso novamente encordoada. A nova edição marcará o reencontro do poeta com a José Olympio, casa editorial em que sua obra permaneceu por mais tempo e com a qual Drummond tinha uma enorme afeição.