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Lembrancinha de dia das mães

I.

Nesta semana este texto atrasou porque sou mãe de uma criança que acaba de entrar na escola. Nesta semana. Uma criança não, um bebê, que tem ainda uns meses pela frente até ser só criança. Pensávamos que apenas então ele iria para a escola, quando fosse “só” criança, já criança. “Quando falar”, o pai dizia. “Quando souber contar o que viveu.” Pensávamos — nesse pretérito imperfeito tão perfeito para a sentença, porque quase nada no exercício da parentalidade é como a gente pensa. E a verdade é, depois que se torna mãe ou se torna pai, nem a gente sabe bem como contar o que viveu.

Se o critério, porém, era a primeira parte da expectativa, falar nosso bebê fala. Pelos cotovelos até (essa parte do corpo de que, curiosamente, ele gosta bastante e em busca da qual tateia nossos braços mesmo quando está a um suspiro de dormir). Pronuncia todos os dias um sem-número de palavras. Cada dia mais palavras. Cada dia mais delas juntas, empilhando-as em esboços de frases. No entanto, ainda é um bebê. No entanto, ainda é um serzinho de menos de 80 centímetros de altura, quase a mesma da mochila de rodinhas que, desde a última segunda-feira, ele puxa pelo caminho. No entanto, de todo o sem-número de palavras que repete, mamãe ainda está no topo do ranking. “Mamain”, soando ainda mais sofrida na porta da salinha de aula enquanto ele pensa que a mamãe em questão vai abandoná-lo lá.

II.

Nesta quinta-feira deixei-o chorando na escola e saí de lá chorando também.

III.

São feitas de lágrimas duas das minhas memórias mais remotas. Uma é do primeiro dia de aula, no maternal, chorando de soluçar no trenzinho de crianças puxado pela Tia Stella, a professora-locomotiva. A outra é da festinha do dia das mães naquele mesmo ano, tentando, vestidinha com o avental vermelho do uniforme, apresentar o que quer que me tivesse sido designado na homenagem, mas falhando, empacada, enquanto meus olhos ecoavam o brilho molhado dos olhos da minha mãe.

Duas lembranças: chorando porque minha mãe não estava lá; chorando porque ela estava.

IV.

Nesta quinta-feira, quando voltei para buscá-lo, o Tito abriu um sorriso, correu puxando a mochila, e repetiu “mamain”.

V.

Nesta semana este texto atrasou porque eu, jornalista que escreve sobre política, cogitei que não encontraria nenhum assunto político sobre o qual quisesse escrever. E, contudo, encontrei este. Não sou a primeira nem serei a última a fazê-lo, mas cabe repetir, como meu bebê faz com suas novas palavras, para ver se entra de vez no nosso vocabulário social: maternidade é política.

Saí da escola chorando por deixá-lo, mas tenho uma escola de qualidade na qual deixá-lo. E quem não tem?

Me flagro culpada porque “não era a hora, ele é muito pequeno”, mas não precisei enlouquecidamente correr atrás de uma vaga de creche quando, dias antes de ele completar quatro meses, tive que voltar ao trabalho. E quem precisou?

Justifico para mim mesma a antecipação da matrícula com o argumento legítimo de que não estou conseguindo trabalhar em home office e cuidar dele ao mesmo tempo, mas tenho, pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), uma jornada diária três horas menor (19 horas na soma da semana) do que tem a maioria das trabalhadoras num país onde estabelecimentos e instituições  que empregam fazem questão de que quem trabalha cumpra exaustivas e pouquíssimo produtivas 44 horas até quando não há expediente aos sábados. E quem trabalha essas 44 horas, mais de um terço dos dias, todos os dias?

Acordo cedo, ainda cansada, pensando que horas vou poder dormir de novo, mas não pego ônibus cheio para ir para o serviço ou voltar para casa no fim do dia, nem sequer sou a única responsável pelos cuidados com a casa ou com o bebê, cujo pai cumpre com as obrigações de morador e de pai. E quem pega? E quem é?

VI.

Uma amiga celebrou o fato de meu bebê ter entrado na escola esta semana. “Você vai ganhar lembrancinha de dia das mães”, comentou. Espero que não. Primeiro porque esses festejos são anacrônicos e guardam muito pouco respeito pela criança que cresce em tantos outros múltiplos formatos de família que não este defendido com tanta veemência por quem defende violência e morte com igual veemência. Mas sobretudo porque estamos nesta semana. Esta em que levei meu filho para a escola pela primeira vez porque, no frigir dos ovos, preciso trabalhar. Nela, a lembrancinha que quero para as mães não tem a ver com presente. Ou, na verdade, tem, porque tem a ver com memória: a lembrancinha dos nomes de cada deputado e deputada que, há exatamente uma semana, votou contra Projeto de Lei 1085/23 do governo Lula que determina a igualdade salarial entre mulheres e homens na realização de trabalho de igual valor ou no exercício da mesma função.

VII.

De resto, um sorriso me basta. E um “mamain”.