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‘Venire’ de volta para Pasárgada

ATO I, cena 1

Era manhãzinha do dia 9 de abril, bem cedo, quando a Leila Herédia me acordou. Atendi o celular que ousava tocar àquela hora e era ela, que já tinha acordado o Ricardo Miranda, hoje editor-chefe de O PHAROL, mais cedo ainda, com as mesmas palavras, mais ou menos assim:

“Bejani foi preso pela Polícia Federal”.

A Leila, que hoje está na Rádio Senado, era editora de Política do jornal Tribuna de Minas; Ricardo e eu éramos seus repórteres. Naquela manhã, a PF tinha deflagrado a Operação Pasárgada, que prendeu outros 13 chefes de Executivos municipais por um esquema de liberação irregular de verbas do FPM (Fundo de Participação dos Municípios). E o Carlos Alberto Bejani, então filiado ao PTB e prefeito de Juiz de Fora pela segunda vez, era um deles.

Cena 2

Até ali eu só conhecia a Pasárgada das redondilhas maiores de Manuel Bandeira. Em 2008, porém, a antiga cidade persa cujo nome batizou o idílio irônico do pernambucano que foi uma das principais vozes da literatura modernista tornou-se também o ideal de paraíso dos jornalistas políticos juiz-foranos. Um prefeito preso duas vezes (com direito a vídeo no Jornal Nacional negociando propina com empresas de ônibus urbanos); uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) instaurada; um pedido de cassação; uma renúncia. Nesse meio tempo (só possível porque foi nesse meio tempo), uma investigação jornalística sobre o envolvimento do Vicentão, que era presidente da Câmara e do mesmo partido do Bejani, em outro esquema de corrupção, apontado como dono de uma empreiteira, posta em nome de laranjas, que ganhara inúmeras licitações junto à Prefeitura. E dali a mesma sequência: a instauração de uma comissão de ética; um pedido de cassação, outra renúncia, uma derrota (apesar da votação ainda expressiva) bastante simbólica nas urnas. Ainda teve isso. Era ano eleitoral, caderno Voto & Cidadania a todo vapor, a gente pensando os principais problemas e demandas da cidade, acompanhando agendas, entrevistando prefeitáveis, vendo a Margarida Salomão (PT), hoje prefeita, disparar inesperadamente como favorita em sua primeira disputa, com poucos recursos, para perder para o Custódio Mattos (PSDB) no segundo turno, sob uma enxurrada de panfletos apócrifos que ainda não eram (mas já eram, sempre foram, bem antes de as big techs mostrarem os dentes, desde que a política é política e a informação é informação) fake news.

ATO II, cena 1

O jornalismo é uma cachaça, me dizia a Leila e, se não me engano, o Ricardo também. A Leila nem bebe (ou nem bebia), mas isso não faz da metáfora uma invenção. É a cachaça dela. Era a nossa. Como se trabalhou naquele 2018! E como era embriagante. E como dava ressaca. Quinze anos depois, a despeito de certa saudade, sinto que meu fígado não comporta mais tanto. Talvez eu seja hoje a jornalista menos informada de que se tem notícia, com o perdão do trocadilho. E chego a preferir assim. Tudo que sei sobre a capivara Filó, por exemplo, é contra minha vontade. Gostaria bem mais de escrever sobre como meu filho de 1 ano e meio ficou fascinado por capivaras no Parque da Lajinha, observando uma família delas à devida e respeitosa distância. Ou sobre como a capivara, na perspectiva ameríndia, é um elemento mítico central de Com armas sonolentas, meu romance preferido da escritora Carola Saavedra. Até sobre a prisão do João do Joaninho (Patriota) eu escreveria, ajudando a denunciar o abatimento de três capivaras e um jacu, embora não tenha precisado fazê-lo porque, em 2015, quando o caso aconteceu, já não estava mais no jornal. Tudo isso seria melhor que me deparar, nas redes e na própria imprensa, com a maneira como o desmonte e sucateamento do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) ao longo dos últimos quatro anos, juntamente com a disseminação de mentiras — de forma às vezes deliberada, às vezes (só) acrítica — , transformou o órgão ambiental em inimigo de parte da opinião pública enquanto um tiktoker a quem se atribuem crimes ambientais é tratado como herói só porque lava o pelo de uma delas com xampu.

Cena 2

Talvez seja eu a “venire contra factum proprium” com esta confissão, mas fico feliz que, neste dia 3 de maio de 2023, tenha sido meu filho de 1 ano e meio — fascinado, com a devida distância e o necessários respeito, por capivaras e jacus — a me acordar bem cedo, e não a Leila Herédia para me comunicar sobre a operação da vez da Polícia Federal. Felicidade dupla. Em primeiro por eu não estar, atualmente, como repórter (ainda que esse sentimento não venha desacompanhado de nostalgia e por melhor que a notícia seja). Em (grande) parte, contudo, por um dos investigados não ser mais presidente do Brasil.