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O professor que fez cinema

Só percebi que ele me levava a sério quando minha mãe perguntou: você não vai com o Murilio buscar os livros? Achei que fosse uma brincadeira ou, no máximo, uma promessa para um futuro distante, afinal, eu era uma criança ainda ou um pseudo-adolescente, enfim, ocupava a terceira margem do rio entre as fraldas e a carteira de motorista. Isso foi num almoço lá em casa.

Ele tinha dito que me daria seus livros de cinema. Seus que se tornariam meus. Jamais imaginei que seria naquele dia. A gente conversava de cinema, mas eu tinha vaga noção das novidades francesas; gostava de Spielberg, mas via os filmes que ele me indicava, ele o Vicente. Quando os dois conversavam muito sobre algum filme eu fazia questão de ver: se eles falavam, deveria sem bom.

Meu pai pegou uma mala de mão cinza e preta que a gente levava em viagem e era grande. Talvez me coubesse dentro dela, num tempo em que as proporções ainda eram relativas. Entramos no carro e fomos. Livros e livros e livros na mala e em outra mala e em caixas. E revistas, uma coleção de A cena muda que arregalou os olhos da coleção de Set que ficava no meu quarto.

Aquele monte de páginas em português, espanhol e, sobretudo, francês foram e continuam sendo partes de conversas que tenho com autores e que, a cada encontro, aprendi a ter com o Murilio. Era difícil discordar dele, tinha fundamentos para explicar um filme de que gostava e para debochar de mim quando eu ousava citar alguma história suspeita.

Toda vez que ele e a Tia Lucy passavam por Paris, de certa forma eu ia também. Ia depois, quando eles voltavam e eu ganhava Pariscopes e encartes das mostras e das exibições especiais que sempre traziam. Lia tudo aquilo às vezes anotando os filmes, mesmo sabendo, antes da internet, que precisaria rezar para que algum deles chegasse a Juiz de Fora.

Um dia, muitos anos depois, eu já professor até de cinema, ele me entregou um livro sobre Rocco e seus irmãos. Murilio adorava óperas, conhecia todas, era outro assunto pelo qual passávamos em meio a cinema, política e tudo mais. Era um livro que mostrava a estrutura operística da narrativa dirigida por Luchino Visconti. Li, revi o filme e quando fomos conversar tinha esquecido em casa o livro. “É seu, não precisava trazer.” E ainda ganhei um Kurosawa, outro nome que faz parte de nossos encontros.

Foi em Paris, daquela vez eu estava lá de verdade, acompanhando a Táscia no doutorado. Íamos almoçar quando liguei: podemos atrasar um pouco? tem um Ran em edição remasterizada passando no cinema aí perto.

Claro que atrasamos o almoço, era uma justificativa mais que sensata. Murilio e Tia Lucy se hospedavam na região de Cluny, repleta de cinemas e com museus, restaurantes e acesso fácil para todo lugar. Nos sentamos ali por perto e foi a Tia Lucy que falou: estamos comemorando um ano do Murilio em Paris.

A soma de todas as viagens dele à capital francesa ultrapassava, naquela estadia, os 365 dias. A celebração deu um toque especial àquele almoço.

Falar o que o Murilio fez pela educação seria chover no molhado. Isso ele fez para muita gente, inclusive para mim, que estudei no João XXIII e estava lá num sábado de manhã cantando o hino de Maurício Tapajós na escada da entrada, diante das pinturas de amarelinha no chão, para o Murilio ministro do Itamar nos 30 anos do Colégio de Aplicação.

Fez pelo município de Juiz de Fora quando foi secretário de educação do prefeito Itamar Franco e pediu para o motorista da secretaria no primeiro dia de trabalho: me leve até uma escola muito boa e até uma escola muito ruim. Em poucos meses, a escola que nem tinha paredes ganhou toda uma estrutura com parede e teto, que a equipe encontrou em uma fábrica de madeirite no Paraná, mantida por décadas até ser substituída por alvenaria.

Também fez pelo Brasil, como no diálogo (esse não foi ele que contou) que aconteceu no Ministério da Educação com alguma equipe depois do golpe de 2016. Algum ministro perguntou:

– Por que isso funciona assim há tanto tempo?

– Isso é do professor Murilio, nem o Paulo Renato mexeu.

Muitas pessoas contaram e contarão histórias com o Murilio, sobre educação, política, história e cinema. E verão os filmes que ele viu, lerão os livros que ele leu, se lembrarão de histórias que ele viveu. Sobretudo a Tia Lucy. Desde quarta-feira me pergunto qual o próximo filme que verei sabendo que ele gostaria de ter visto e sobre o qual não conversaremos.

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