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A congada mineira: uma festa de cores, fé e força da população negra

Encontro mineiro de folias de reis (Fotos: Márcia Costa)

Em dia de cortejo se acorda cedo. A ordem é não perder uma das mais expressivas festas da cultura negra: o encontro de congadas em Conselheiro Lafaiete. A convite da Guarda de Nossa Senhora do Rosário, de Mariana, saímos todos de ônibus da cidade histórica para acompanhar este festejo popular que consagra a fé e a força das nossas raízes afrodescendentes.

No ônibus há crianças, idosos e adultos das mais variadas idades, naturalmente envolvidos com a tradição daquele ritual. Vale qualquer esforço para louvar Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia, santos de proteção dos escravos negros.

Em Ouro Preto, conta a tradição oral que, no século XVIII, após ser alforriado, Chico Rei, ex-rei do Congo, vendido como escravo, alforriou o filho e outros membros da nação, integrando-se à Irmandade do Rosário e de Santa Efigênia. Em um dia de Reis, 6 de janeiro, seguiram em um grande cortejo festivo, foram coroados na capela de Santa Efigênia e depois desfilaram pelas ruas de Vila Rica, em uma data que marcou a criação da Festa do Reinado em Ouro Preto. Até hoje a celebração é reproduzida em várias cidades de Minas Gerais, e homenagem à figura de Chico Rei.

No continente africano, os súditos faziam o cortejo aos Reis Congos, uma forma de agradecimento aos seus governantes. A congada, congado ou congo, expressão cultural e religiosa, é uma celebração que se traduz em canto, dança, teatro e espiritualidades cristã e de matriz africana. Trazida da África para o Brasil, é hoje celebrada de norte a sul do país, em uma mistura das festas trazidas pelos negros escravizados com a religiosidade cristã praticada na colônia.

Desde a colônia, os santos negros – como são Benedito, o Africano, santa Efigênia, uma princesa etíope, e Nossa Senhora do Rosário – são louvados pela congada brasileira e homenageados em cultos e igrejas construídas com as próprias mãos e o dinheiro de alforriados e escravizados.

O conhecimento de toda essa tradição parece permear o ar aquele dia. Cada um que participará daquele cortejo na cidade de Conselheiro Lafaiete parece perceber a riqueza cultural, política e sagrada que o ato envolve para o povo negro.

Ao chegar ao nosso destino, Conselheiro Lafaiete, avistamos as guardas de várias cidades descerem as ruas em direção ao centro de cultura negra da cidade. Uma a uma, elas vão se aproximando, em um desfile de cores, ritmo, fé e força. A música marca e dá o comando. O sol castiga e esquenta o asfalto, fazendo as pessoas buscarem as poucas sombras que existem do lado de fora do centro cultural. Em nenhum momento o desânimo abate o propósito daquela gente, que não para de cantar, dançar e louvar.

Um a um, os grupos entram no centro de cultura negra do bairro, ecoando cantos fortes em devoção à Nossa Senhora. Neste louvor intenso, a emoção ganha ritmo maior na voz dos homens que comandam os instrumentos de tambor: “Nossa senhora, me ajuda a carregar essa cruz tão pesada”, diz a letra de uma das canções entoadas por eles, tomados pela fé e acompanhados de seus símbolos religiosos mais ricos e de seus instrumentos.

Na tradição oral da congada, uma pessoa puxa o canto e a multidão acompanha o refrão. Entoam-se as dores da escravidão, os lamentos de um povo tirado à força de sua terra. Invocam-se os santos e as forças divinas em cantos de redenção e de esperança de uma vida melhor.

O canto é acompanhado de uma variedade de instrumentos musicais, como a caixa, o pandeiro, a viola, o violão, a sanfona e muitos outros. Figurinos e adereços impregnam de beleza o ritual e representam a hierarquia e os personagens nas festas. Capas, chapéus, espadas e lenços são os trajes usados, enquanto fitas e bandeiras coloridas trazem a imagem dos santos e identificam os diferentes grupos do cortejo. As joias e as coroas dos reis revelam a exuberância dos soberanos africanos.

Com sua profusão de cores, sons e emoções, o cortejo deixa o centro cultural, ganha as ruas, atrai os olhares silenciosos e as palmas da população, a maioria negra que habita aquele bairro. O cortejo segue em direção à igreja mais próxima, onde será celebrada a missa aos santos protetores. Antes da cerimônia religiosa, a comida é dividida entre todos, sabor divinal que ajuda a compensar as três horas de atividade debaixo de sol latente. Ninguém para de entoar o canto ou de tocar o instrumento, uma prova de fé que toma conta da alma e do corpo de cada um naquele dia.

Aprendo que a congada é uma prova de fé única do povo negro, que em Minas Gerais representa 61% da população, conforme dados de 2019 da Fundação João Pinheiro – e a estimativa é que este número tenha aumentado hoje. Apesar de ser maioria no estado e no país, essa gente ainda precisa lutar muito pelo reconhecimento da sua cultura e do seu espaço. A congada é uma demonstração de que eles resistem bravamente a todas os enfrentamentos, e contam com a força espiritual para prosseguirem em uma árdua e respeitável caminhada.

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