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Agora e na hora de nossa morte

Festa da Congada e Moçambique em Piedade do Rio Grande (Foto: Diocese de São João Del Rei/Divulgação)

Mistérios dolorosos

I.

O capitão canta: “Mandou chamar, mandou chamar,/ a Senhora do Rosário mandou chamar”. Em seguida, a guarda responde, com os mesmos versos, em coro, confirmando o chamamento. Entoam o canto entrando na igreja, reencenando o mito segundo o qual foram os negros moçambiqueiros que, com seus instrumentos, pediram à santa que viesse protegê-los. Foram os toques e as vozes do povo negro que conseguiram, em algumas versões, fazer com que a imagem dela escapasse do buraco de uma gruta ou, em outras, salvar das ondas outra imagem que apareceu no mar.

O capitão, aqui, nada tem a ver com o que foi alçado à Presidência da República, há quatro anos, e dela precisa ser escorraçado nos próximos dias. A guarda, nesta história, tampouco carrega armas letais como as que o futuro ex-presidente distribuiu ao seu séquito, a ponto de um famoso aliado em prisão domiciliar receber policiais federais a granadas e tiros de fuzil. Em Piedade do Rio Grande, cidade de Minas Gerais onde os vi pela primeira vez, também há quatro anos, este capitão e esta guarda carregam outras armas: manguaras nas mãos, abrindo os caminhos; guizos nos pés, lembrando os grilhões do cativeiro, mas também prenunciando tempos de liberdade; o nome da cidade como principal sentimento pelo qual suplicar e para se oferecer.

Ao baterem suas manguaras e fazerem soar seus guizos, este capitão e esta guarda representam um enredo oposto ao da narrativa de horror escrita pelos que tentam pôr fim a todo um país. Pelo contrário, nesta outra história, este capitão e esta guarda cantam para tirar o país do buraco da gruta ou impedi-lo de se afogar no mar.

II.

Foram muitas as vezes que, quer como fato, quer como lenda, a depender da (des)crença de cada um, a “Senhora do Rosário” mandou chamar. Em 1214, na cidade de Toulouse, na França, chamou Domingos de Gusmão, fundador da Ordem dos Pregadores, e lhe pediu para rezar o conjunto de orações que hoje formam o cordão feito de crucifixo e contas como o que os frades dominicanos trazem atado ao cinto. Em 1858, chamou Bernadette Soubirous, numa gruta de Lourdes, também na França, e disse à moça: “Eu não prometo fazer você feliz neste mundo, mas no próximo”. Em 1917, chamou três pastorinhos de Fátima, em Portugal, e, no período de 13 de maio a 13 de outubro, revelou a eles três segredos sobre o fim do mundo. Nas Minas Gerais, no Brasil, sobretudo nos meses de maio e outubro, continua chamando congadeiros e moçambiqueiros, transformada na Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.

III.

Meu filho Tito tem o nome de um frade dominicano cearense perseguido, preso e torturado durante a ditadura civil-militar no Brasil. Um frade fichado pela polícia depois de ter participado do congresso clandestino da UNE (União Nacional dos Estudantes) em Ibiúna, no estado de São Paulo, em 1968. Um frade que, no ano seguinte, voltou a ser preso, juntamente com outros frades — entre os quais Frei Betto, Frei Fernando de Brito e Frei Ivo Lesbaupin — acusados de manter contato com a ALN (Ação Libertadora Nacional) e com Carlos Marighella. Um frade que, em 1970, foi incluído na lista de presos políticos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bucher, sequestrado pela VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), e banido do Brasil. Um frade que, em 1974, exilado no convento Sainte-Marie de La Tourette, casa de frades dominicanos localizada em Éveux, mais uma vez na França, não recebeu, em seus delírios, o chamado da Virgem do Rosário, mas do torturador Sérgio Paranhos Fleury. E se matou.

IV.

Os relatos escritos por Frei Tito sobre a tortura que sofreu na prisão, e que tiveram repercussão mundial na luta pelos direitos humanos e pelo fim da ditadura no Brasil, serviram de inspiração para a cena “Agnus dei”, que escrevi em 2014, na época dos 50 anos do golpe civil-militar. Uma versão dela — com, por escolha estética, um franciscano no lugar de um dominicano — pode ser vista no YouTube, interpretada pelo ator Gustavo Burla. Em 2015, a cena integrou, dessa vez interpretada pelo ator Marcos Araújo, o espetáculo “Canção de ninar (ou Faça o que tem que fazer)”, montado pelo T.O.C. (Teatro Obsessivo Compulsivo).

Foi antes de o Brasil sofrer outro golpe, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. E bem antes de um deputado obscuro — que, na sessão, homenageou um torturador tão notório quando Fleury — ter sido, apesar disso (ou talvez por isso) eleito presidente do país.

V.

Sobre a Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande, por sua vez, escrevi para o site da revista Carta Capital, às vésperas das eleições de 2018. Na minha ingenuidade, considerei, no texto, que eram aquelas as eleições “mais tensas — e mais emblemáticas — da história do país, pelo menos desde o pleito de 1989, o primeiro depois da redemocratização”. Na mesma inocência, ao apontar que aquela disputa ocorreria, como ocorreu, no dia 7 de outubro, data em que a Igreja Católica celebra a devoção a Nossa Senhora do Rosário, esqueci-me das palavras que a mulher das rosas nos pés e rosário nas mãos disse à jovem Bernadette: “Eu não prometo fazer você feliz neste mundo, mas no próximo”. Não fomos felizes naquele pleito e os últimos quatro anos provaram isso, com um sem-número de martírios cotidianos. O próximo, contudo, chegou. É este. É agora.

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