Diversidade

Cinco vezes Letícia: mulheres que desafiam os estereótipos de gênero

Leticya (ao centro) integra a banda Inoutside com Duda Gielo (baixo) e Mariana Campello (guitarra e vocal)(Foto: Pedro Soares)

Em 2021, uma mulher foi estuprada a cada 10 minutos no Brasil. Nesse mesmo país, houve um feminicídio a cada 7 horas no ano passado. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança. Nesta terra que mata e viola mulheres, o prosaico ato de existir contraria as estatísticas. E as chances de isso acontecer diminuem quanto mais longe da normatividade se está. Para mulheres negras, LGBTQIA+ e pobres, viver é ter uma bomba-relógio atrelada ao corpo, que ainda que não exploda, já violenta só pela ameaça contínua.

Quando se sobrevive inteira, as perspectivas também são desanimadoras. Mesmo que se capacitem mais do que os homens, somente 37,4% das mulheres brasileiras ocupam algum cargo de gerência no mercado. Além dos homens serem maioria nas lideranças, mulheres recebem até 38,1% menos quando ocupam essa mesma função. Em cargos ministeriais, somos apenas 8,7% do total de cadeiras. Ocupamos 14,8% da Câmara dos Deputados e 16% das câmaras de vereadores. Os números são da segunda edição da pesquisa “Indicadores sociais das mulheres no Brasil”, publicados em 2021 pelo IBGE.

Além de tudo isso, a economia do cuidado, que envolve afazeres relacionados ao cuidado de pessoas e gerenciamento geral dos domicílios, equivale a 11% do PIB brasileiro, de acordo com o IBGE. É mais do que a participação de qualquer indústria e o dobro do que o setor agropecuário produz. E é uma reunião de afazeres domésticos, de cuidado com pessoas e das muitas tarefas de gerenciamento de uma casa que recaem historicamente sobre as mulheres. “Não é amor, é trabalho não remunerado”, observa a filósofa feminista Silvia Federici.

Não é de surpreender que as mulheres estejam exaustas. Ao contrário, chega a surpreender como se caminha em frente e como portas seguem sendo abertas frente a tantas adversidades. O Pharol encerra março  inspirado por cinco Letícias de Juiz de Fora, que poderiam ter qualquer outro nome, mas que dividem, com suas xarás, o fato de desafiarem estatísticas e transformarem realidades, fazendo lembrar a célebre frase de Angela Davis, cada uma a seu modo: “Eu não estou mais aceitando as coisas que eu não posso mudar. Eu estou mudando as coisas que não posso aceitar”.

“Homens brancos têm dificuldade em verem a Letícia roteirista e diretora”

Letícia Silva, 24, cineasta (Foto: Paula Duarte)

Num espaço notoriamente reconhecido como branco e masculino, o cinema,  Letícia Silva considera um grande privilégio poder dar vazão às suas emoções e contar histórias de pessoas parecidas com ela.  “Ainda mais dentro do microespaço de Juiz de Fora”, pondera a cineasta, que está em gravação do seu segundo filme, “Vivendo de Amor”, sobre relacionamentos interraciais.

“Acho uma oportunidade maravilhosa poder criar coisas diferentes das que eu conheci como sendo ‘narrativas sobre pessoas negras’, poder ressignificar esse lugar. Porque com certeza há pessoas, principalmente mulheres negras, com histórias incríveis a serem contadas, e também aquelas que chegaram antes e foram abrindo esses espaços para que eu hoje possa fazer isso”.

No filme atual, Letícia se esforçou para que houvesse apenas mulheres trabalhando no set e sentiu uma diferença gritante em relação a experiências anteriores.

“O respeito que estou recebendo no set é diferente. Percebo que é uma dificuldade para os homens brancos, terem a Letícia nessa posição de diretora, de roteirista, de uma pessoa que tem poder de direcionar as coisas no set. Foi difícil sempre que trabalhei com eles. Mas a diversidade vem quando a gente passa a ocupar esses espaços e vê que não tem pessoas negras, não tem muitas mulheres, e quando tem, são brancas”, conta ela,  que tem na atual equipe pessoas que nunca trabalharam com cinema.

“A partir dessa raridade de ser uma das poucas pessoas negras que faz cinema, acho que a gente tem que ter esperança de entrar nos furos e puxar os nossos também”, avalia Letícia também diretora curta “Janaína” (2020).

“Vivendo de amor” tem financiamento aprovado pela então Lei Murilo Mendes, em 2019, e aborda um casal de mulheres jovens, mesclando ficção e realidade. 

“Tento não falar da  experiência negra de uma perspectiva de sofrimento, de dor, e de trauma. Porque isso é o que a gente já vive no nosso dia a dia, é o que gente já vê cotidianamente na mídia. A gente também tem a nossa potência de contar outras histórias e de falar a partir de outros modos”.

“É impossível ser mulher no mundo dos games sem ter sofrido alguma instância de machismo”

Letícia Perani, 39, coordenadora e professora do curso de licenciatura em Artes Visuais da UFJF e conselheira divisão brasileira da Digital Games Research Association – DiGRA (Foto: Arquivo pessoal)

Quando era criança e se encantava com videogames, Letícia Perani jamais poderia imaginar que anos depois, enquanto cursava comunicação na UFJF, descobriria que eles poderiam ter um papel tão grande na sua vida profissional.

“Foi uma descoberta que mudou minha vida, porque descobri que eu podia pesquisar algo de que eu gostava bastante”, conta ela, que leciona disciplinas relacionadas a arte-educação e pesquisa os games com um viés interdisciplinar.

“As mulheres sempre tiveram muito espaço dentro dos Game Studies no Brasil e no exterior desde o início deles, mais de 20 anos atrás. Hoje temos também a presença de uma comunidade de mulheres trans expressiva, bem como de toda a comunidade LGBTQIA+. Acho que esse espaço existe porque os games são uma área ainda em crescimento, então as disputas de poder estão em curso, dentro, é claro, de uma sociedade estruturalmente machista”, observa.

No entanto, Letícia destaca e lamenta o fato de que a experiência das mulheres no universo gamer esteja inexoravelmente colada à vivência de machismos. “É impossível ser mulher e jogar sem ter sofrido alguma instância de machismo. Especialmente em jogos on-line há esse peso, você é sempre contestada: ‘a mulher está aí para atrapalhar o jogo’, ‘é inferior no jogo’, ou ‘se mostra como mulher para obter algum tipo de vantagem no jogo’”.

Também como coordenadora de um curso de ensino superior, espaço historicamente ocupado por homens brancos, cis e de meia-idade, Letícia percebe que as  mulheres – sobretudo as jovens – quando não são minoria, são silenciadas em sua atuação.

“Às vezes a palavra de colegas homens tem mais peso do que das acadêmicas mulheres. Quando estamos inseridas nela profissionalmente, percebemos que a academia reproduz as estruturas de poder presentes na sociedade, especialmente o machismo. É um choque e algo com que a gente tem que ligar todo dia, e é muito frustrante. Aí a gente se vê obrigada a ser ainda mais competente, mais esforçada, para ser ouvida. É um grande peso no dia a dia”.

A pesquisadora destaca, ainda que tanto a academia quanto o universo gamer precisam não apenas de mais mulheres, mas de maior representação de identidades de gênero, de raça, de classe, idade e vários outros marcadores sociais. Só assim, em sua visão, é possível construir representações que fujam a estereótipos limitantes, nos jogos, nas pesquisas e na vida.

“Estamos vivendo retrocessos muito grandes temos do pensamento social e do pensamento cultural, então acho que é importante buscar olhares e falas diversos para termos espaços mais diversos. Mas vejo muitas experiências positivas também. No primeiro congresso da DiGra Brasil, por exemplo, tive oportunidade de moderar uma mesa sobre questões de gênero nos jogos, composta por pesquisadoras mulheres,  e também muitas jovens na plateia. Então ver a entrada dessas novas pesquisadoras na área mostra o peso que a pesquisa delas tem e terá na área de games.”

“Preferiu acreditar na existência do nome ‘Letício’ do que no fato de eu ser mulher e barbeira”

Letícia Dias, 24 anos, barbeira e estudante universitária (Foto: Arquivo pessoal)

Semanalmente, Letícia é tratada no masculino por clientes da Gafanhoto Barber Shop, barbearia em que trabalha. “Ô meu amigo, ô amigo… quem me salva desse constrangimento é meu amigo Flavinho do trabalho, que sempre me apresenta: ‘ah, essa é a Letícia, nossa barbeira… Isso me poupa de ter que dizer: ‘oi, eu sou uma mulher”.

Para ela, esse não reconhecimento como mulher é uma forma muito específica de microagressão contra mulheres como ela, que não correspondem ao imaginário coletivo sobre como uma mulher deveria parecer. “É muito difícil eu ser reconhecida como mulher e eu me sinto, de fato, agredida por isso porque eu me reconheço como mulher. E acho que sofro isso especialmente por não ser feminina, e também por ser lésbica”, diz ela, apontando que misoginia e lesbofobia são, infelizmente, parte de seu cotidiano profissional.

Em um episódio extremo e absurdo da negação de sua identidade, ela foi chamada, depois de se apresentar a um cliente, de “Letício”.  “Como fiz a barba dele, durante todo o procedimento não conversamos muito. No final ele disse ‘Tchau, Letício!’, porque sim, ele preferiu acreditar que alguém pudesse se chamar Letício do que no fato de eu ser mulher e barbeira. Já tive também clientes que se recusaram a ser atendidos por mim, mesmo quando não havia outra pessoa disponível na barbearia. Viraram as costas e foram embora. Preferiram ser atendidos por ninguém do que por mim. Isso me atinge em vários níveis porque eu não me sinto pertencendo àquele lugar, me questiono sempre se sou boa o suficiente como profissional numa área que amo. Mas na verdade sou sempre julgada por outros fatores que não o profissionalismo”.

Letícia vê a barbearia como um espaço masculino socialmente consolidado para disseminação de preconceitos. “Os homens têm um pacto inabalável em relação a isso. A barbearia é onde eles falam de mulher, falam de gays, falam coisas que não têm coragem de falar com ninguém. É o lugar onde homens se encontram com homens para zoar, e isso é carregado de preconceitos contra minorias. Enquanto eu sou rejeitada por não ser feminina, mulheres que são sofrem assédio sexual, gays afeminados sofrem homofobia…”, relata ela, que descobriu a paixão por cotar cabelos durante a pandemia, assistindo a vídeos. Depois de se formar em um curso técnico, exerce a profissão há um ano e meio, e tem dois sonhos: se tornar referência no atendimento a mulheres e a pessoas LGBTQIA+ e se especializar em cortes artísticos.

Por fim, a barbeira acredita que é preciso transformar estes espaços de privilégio masculino, as barbearias, de polos de preconceito impune a campos de escuta contra desigualdades. “Se estamos numa sociedade patriarcal em que os homens ditam o que pode ser dito e o que não pode, cabe a eles serem aliados nas lutas de minorias das quais eles não fazem parte. Porque é muito mais fácil um homem ouvir outro.”

“Como assim uma mulher negra e mais nova do que eu é coordenadora?”

Letícia Santos, 28, assessora de comunicação na UFJF (Foto: Carolina de Paula)

No mesmo campus em que já vendeu canudinhos de doce de leite e roupas para garantir uma graninha enquanto cursava comunicação, Letícia Santos hoje gerencia uma das equipes que trabalham na assessoria de comunicação da UFJF. “Lá em casa somos três mulheres: eu, minha mãe e minha irmã.  Sempre vi minha mãe se virar para criar a gente sozinha, nunca nos faltou nada e isso é fruto do esforço dela, enquanto trabalhava, estudava…Aí eu sempre me cobrei de me virar, ter meu dinheirinho pras minhas coisas, ser independente.”

Segundo Letícia, exercer a função de coordenadora traz não só os desafios inerentes ao cargo, mas a dificuldade em ser ouvida e respeitada como mulher negra e jovem que o ocupa. “ Sinto uma cobrança ainda maior, um questionamento do tipo ‘como assim uma mulher negra e mais nova do que eu é coordenadora? Isso me faz ter que não errar, não posso errar, tenho que ter mais produtividade, tenho que ter mais, me impor mais. Tenho que ser muito melhor do que outras mulheres por ser negra, por ser jovem, e, claro, muito melhor que os outros homens. Nada pode sair dos trilhos.”

Sobre preconceitos e barreiras que enfrenta no dia a dia, Letícia afirma que não se põe mais em uma posição de ensinar as pessoas sobre as opressão que sofre. Esta postura se alinha ao que a autora e ativista Audre Lorde propõe ao afirmar que, neste processo de ensinar, “Os opressores mantêm sua posição e fogem da responsabilidade por seus próprios atos. Há uma drenagem constante de energia que pode ser melhor usada para nos redefinirmos e concebermos cenários realistas para alterar o presente e construir o futuro”.

“Estamos em 2022, a maioria das pessoas têm sim, uma noção melhor de questões de raça e de gênero, ou pelo menos têm acesso. Às vezes tento levar as pessoas a refletirem. Por exemplo, se alguém se opõe ao sistema de cotas sem ter a mínima vivência ou relação com o assunto, sendo uma pessoa completamente privilegiada, tento sempre fazer a pessoa se colocar no lugar de quem precisa delas, dou minha opinião. Mas não ensino mais, a gente se cansa de dizer o óbvio.”

Uma das experiências mais marcantes na sua trajetória profissional foi ter ido a um encontro de assessores de comunicação das universidades públicas em Brasília, vinculado à Andifes. “Foi muito importante ter acesso a um espaço como esse, e poder ter conhecido mulheres negras que foram reitoras de universidades públicas, poder ver aquilo e pensar que é possível. Na época eu tinha gravado um vídeo institucional em defesa da universidade pública e as pessoas vinham me perguntar: ‘ah, você que é a menina do vídeo?’. É muito legal poder ser reconhecida pelo meu trabalho.”

“Sempre ouço ‘você toca que nem homem’ como se fosse elogio”

Leticya Bernadete, jornalista, pesquisadora e baterista da banda Inoutside (Foto: Pablo Abritta)

Estar numa banda de rock enquanto concilia mestrado e trabalho nunca havia passado pela cabeça de Leticya.  Mas veio como uma grata surpresa da vida adulta e um presente a quem passou a infância e adolescência em aulas de percussão, teclado, violão e chegou a integrar a Orquestra Sinfônica de Santa Rosa de Viterbo, sua cidade natal no interior de São Paulo.

“Até hoje eu ainda estou muito sem acreditar mesmo que tem uma música minha por aí. É uma música que eu fiz, a linha de bateria que eu ajudei a construir. E ela vai ficar ali na internet pra sempre e sei lá, daqui alguns anos, se eu tiver filhos, eles vão ouvir a música que eu fiz. É meio surreal quando a gente pensa nisso”, conta ela sobre “Dare the night”, disponível em várias plataformas digitais, lançada pela Inoutside, autodeclarado “girl-power-trio de hardrock alternativo” que Leticya integra com Duda Gielo (baixo) e Mariana Campello (guitarra e vocal).

De fato um power trio -na concepção musical e no sentido social -,  as integrantes cutucam o machismo e a heteronormatividade historicamente consolidados na cena do rock no mundo todo. “É muito importante pra gente reafirmar essa identidade, que é uma banda de rock 100% feminina e é uma banda de rock de três mulheres LGBT. É a nossa hora de se posicionar e se a galera for gostar da gente, tem que ser pelo que a gente é e não porque pelo que a indústria impõe, digamos assim”, aponta Leticya. 

O clipe da música, gravado como trabalho de conclusão de Mariana no curso de Artes e Design da UFJF, transborda essa autenticidade, seja no plot de cenas de mulheres flertando e se pegando, seja nos detalhes de figurino e maquiagem que buscaram retratar a personalidade de cada uma da banda.  Além disso, reafirma a potência do rock feito por três mulheres ao contrário do que o senso comum parece não se cansar de querer afirmar.

“A forma como a gente às vezes é elogiada é uma coisa que incomoda: “Caramba! Vocês tocam igual ao homem”, “Achei que era um homem tocando”, “Parece um grandão tocando lá”. Como se ser homem fosse um elogio por si só. E não, somos três mulheres perfeitamente capazes de fazer rock como qualquer outro cara, melhor que eles até.”

Leticya conta também que outros aspectos pesam, como, por vezes, o não reconhecimento na Inoutside como uma banda de rock, a menos que seja em contextos específicos, como festivais de mulheres. “Às vezes rola pouca abertura em outros eventos. Mas estar entre poucas, abrir portas vem com um peso sim, mas algo que a gente escolheu carregar. Nós três crescemos ouvindo bandas que eram majoritariamente formadas por homens ou que tinha uma vocalista e o resto da banda era de homens, entendeu?”

Para Leticya, poder participar ativamente na transformação do cenário que viu por toda a vida é um dos aspectos mais gratificantes da carreira musical que vem construindo. “O primeiro show que a gente fez com essa formação foi um evento de rock que só tinha banda de homem e a gente de mulher. Aí tinha menininha que viu a gente tocando e simplesmente ficou encantada, foi tirar foto com a gente, e a mãe dela falou que foi o primeiro show da vida dela, que tinha adorado. Foi muito simbólico ter isso no primeiro show, um estalo de que a gente tem que tem que fazer música e incentivar meninas a fazerem o mesmo, se quiserem.” A semente está plantada.

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