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Ontem, hoje e amanhã

De ontem

Nesse 5 de setembro de 2022, completaram-se 31 anos de um dos presentes mais memoráveis que já ganhei. Veio acompanhado de um bilhetinho em papel branco, escrito com a letra do meu pai:

“Há duas datas para serem celebradas nos dias 5 de setembro. Uma delas é o seu aniversário. Na outra, é comemorado o dia em que a gente se conheceu”.

Ele prometia, no bilhete, que, sobre essa segunda data, um dia falaríamos mais. Nunca falamos. Mas, junto com o bilhete, meu pai trouxe Thiago de Mello para mim.

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Escrevi sobre Thiago de Mello no Instagram no ano passado, quando a crise da falta de oxigênio para os pacientes da Covid-19 assolou Manaus, no mais macabro experimento anticientífico que o Ministério da Saúde encabeçou nesta pandemia. Pensava naquelas muitas mortes e, automaticamente, em Thiago de Mello, morador de Manaus, o que era assustador, porque, desde meu aniversário de oito anos, Thiago de Mello sempre me fizera pensar em muita vida.

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Exatamente um ano depois da crise (ou do crime) da falta de oxigênio em Manaus, Thiago de Mello morreu.

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Naquele 5 de setembro de 31 anos atrás, no meu aniversário de oito anos, meu pai me trouxe Thiago de Mello emoldurado entre vidros grossos. “Estatutos do Homem”. Provavelmente eu desconhecia, então, o significado de um estatuto, mas soube, de imediato, que aqueles 13 artigos, somados ao Artigo Final, eram a coisa mais linda que eu já tinha lido.

(Lembrando o Artigo 12, meu preferido na infância, penso com carinho em seu Parágrafo Único e nos amigos que se casaram num 5 de setembro, há 13 anos, e que seguem respeitando-o à risca: “Só uma coisa fica proibida: amar sem amor”.)

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O quadro dos “Estatutos do Homem” ainda existe, apesar de ter precisado mudar de moldura depois de um acidente que estraçalhou-lhe o vidro pouco tempo antes da pandemia. Existe e fica displicentemente encostado na parede do corredor, parte pela falta de vergonha na cara de pendurá-lo mesmo depois de dez anos neste apartamento, parte por um gosto pessoal pela displicência. A verdade é que gosto dele ali, no chão do corredor, porque poesia também se faz ao rés do chão.

De hoje

Neste 6 de setembro de 2022, completa-se um ano do acidente que, por um triz, por mais clichê que essa expressão possa soar, poderia ter levado minha mãe. Era noite quando meu irmão do meio ligou, o que era estranho porque ele já tinha falado comigo na véspera. “Não se assuste, mas é que a mamãe sofreu um acidente”, foi mais ou menos o que ele disse já do hospital, à espera da entrada no centro cirúrgico. Horas antes, numa pequena chácara que fica a cerca de 48 quilômetros de onde eu moro, ela havia caído de/com uma escada de alumínio extensível e fraturado o ombro esquerdo, o cotovelo esquerdo, o pulso esquerdo, o lado direito do quadril. Passou por três cirurgias, naquele 6 de setembro e nos dois dias que se seguiram. A fisioterapia para reabilitação dos movimentos do braço esquerdo continua e também completará um ano em breve.

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Naquele 6 de setembro de um ano atrás, antes de minha mãe entrar no hospital, minha sogra, que também era uma mãe, tinha acabado de sair de um. Pouco mais de um mês depois, meu filho nasceu, uma de suas avós voltou a andar, a outra partiu.

De amanhã

Neste 7 de setembro de 2022, completam-se 200 anos que, dizem, Dom Pedro deu um grito às margens do Rio Ipiranga, em São Paulo, e adicionou o algarismo romano I ao seu nome. Completam-se também um tanto de 7 de setembros (confesso ter perdido a conta) dos quais se apropriou uma horda — certamente de volta às ruas amanhã — que desconhece por completo o que, simbolicamente, significam independência e liberdade.

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É bem possível que, dois dias depois do meu aniversário de oito anos, eu, neta de um oficial subalterno reformado do Exército, tenha sido levada para assistir a parada militar. Mas meu avô, getulista, já morreu há mais de 20 anos, quase o mesmo tempo em que passei a preferir outro grito, o dos excluídos; a “Pátria amada idolatrada salve salve” de outro hino, a canção com esse nome escrita por Manduka (filho de Thiago de Mello!) e interpretada por ele e por Soledad Bravo; o coração de outro Dom Pedro, o Casaldáliga.

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