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Não adianta nem tentar

Até poucas horas atrás, eu não fazia nenhuma ideia do que escrever aqui. Sabia, porém, aquilo sobre o que não queria escreve de jeito algum. Não sobre o fato de que no último domingo, Dia da Consciência Negra, enquanto uma celebração/conscientização da data acontecia no parque do Museu Mariano Procópio, em frente ao edifício histórico ao lado havia um aglomerado de gente que revogaria a Lei Áurea se pudesse.

Também não queria gastar uma única linha deste espaço — nenhuma palavra ou vírgula ou ponto final — com minha torcida nada secreta para que Neymar não marque qualquer gol na Copa do Mundo. Nem com a lástima que é o grupo de trabalho de educação no governo de transição e/ou com o descalabro que é pensar política educacional pública junto com Fundação Lemann, Itaú e Todos Pela Educação. Nem com o lamento sobre quão poucas vacinas infantis chegaram ao município. Nem com o desconforto que eu e tantas mulheres sentimos em nossos próprios corpos e nossas próprias peles.

Neste 22 de novembro, só queria escrever de amor, ainda que me debatendo nas amarras do clichê da jornalista que quer ser só cérebro, e não vísceras; que se quer atenta apenas ao fluxo do texto, e não de células sanguíneas e plasma nas veias. Queria escrever de amor, embora achasse que não pudesse, não aqui.

E então Erasmo Carlos morreu.

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No fim da infância/início da adolescência, adorava uma novela cuja trilha sonora incluía, como tema de um dos casais principais, a canção Detalhes, na voz de Erasmo. Eu tinha o CD da novela e às vezes ouvia a música no repeat, achando lindo e doce e, vá lá, até prepotente, mas também profundamente triste, aquele homem que cantava “Não adianta nem tentar me esquecer…”. Fiz o mesmo esta tarde, repetindo-a no Spotify. “Imediatamente você vai lembrar de mim”, cantou Erasmo. E imediatamente me lembrei de tantas coisas.

A memória é algo que me inquieta. Sempre inquietou. Ultimamente me esqueço de tarefas, confundo sonho com realidade e nem sempre sei ao certo se disse algo a alguém ou só pensei em dizer. Mas me recordo da capa alaranjada desse CD e de, mais ou menos na mesma época, talvez um ou dois anos depois, passar horas ao telefone com minha amiga Aninha, a mesma que, nesta tarde, me escreveu sobre Detalhes, quando a compartilhei: “Com ele cantando essa música fica muito mais bonita…”. Fica, sim.

***

Curiosamente, na tentativa de encontrar um tema para o artigo de hoje, antes mesmo da notícia sobre a morte do Erasmo, eu havia pensado na Aninha. E no Bruno, na Carol, na Dani, na Elena, na Flávia, no Gustavo, num abecedário de amizades de muito tempo, as que resistiram e as que não, e que são também amor. Pensei em escrever sobre elas. Ou sobre memórias e desmemórias. Ou sobre o porta-retrato que se quebrou exatamente hoje aqui em casa e deixou sem moldura uma antiga fotografia em que, a despeito de não ser mais a mesma pessoa que me sorri (panta rei, “tudo flui”), eu continuo vendo o sorriso mesmo assim.

Pensei em escrever sobre detalhes, esses tão pequenos… Acabei escrevendo sobre Detalhes, muito grande mesmo para esquecer. Erasmo dizia para não nos iludirmos, que todas as canções são de amor, mesmo as que não falam de amor.

Todos os textos também.

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