
Pela noite Juiz de Fora parece ainda pioneira, condizente com um passado que se foi, o dela e o meu.
Ao volante do carro, percebo a aprumada Rio Branco, arborizada ao longo de quase toda sua extensão, mas sobretudo entre o Seminário Santo Antônio e o Parque Halfeld.
Ou será mais arborizada pela impressão minha de ter passado tantas vezes durante a vida por aquela exata faixa da avenida?
Na principal via da cidade, procuro várias casas que sempre admirei.
Aquela ao lado do Cine Excelsior, que virou um prédio destes iguais a outros tantos, a antiguíssima casa sede do Pró-Música, que tinha um monte de árvores ao fundo, e hoje é a sede do Banco Safra, onde antes havia uma das primeiras academias da cidade, a que primeiro frequentei à busca dum corpo que nunca veio …
(A singularidade traz mais beleza, quase sempre, Dubai que me perdoe!)
Não são casas sem história, sem minhas histórias, como estes prédios e sedes de grandes conglomerados, a que não tenho acesso, a que nem quero ter acesso.
Eu as procuro, procuro outras, que vivem ainda em minha cabeça, numa procura em vão. Elas se foram, não voltam mais. Por que, então, ficam na mente da gente?
Contento-me com algumas casas que resistem na descida do Seminário Santo Antônio, ele próprio tão transformado ao longo do tempo.
Procuro algumas ainda depois da descida, algumas ainda mais depois, num imaginário meu que vai até a subida da Garganta.
Rumo à Catedral, um deslumbramento: intacta retina para a intacta Casa de Itália, a Domus Italica, que, por esses tempos, quase foi à venda, provavelmente para ser mais um prédio sem graça com seus consultórios e escritórios sem graça.
Ali “io parleva un pò de italiano”. Se bato à porta, só não encontro o Artur Laizo, um dos grandes defensores da cultura italiana local, porque na pandemia – e enquanto escrevo vivemos os tempos pandêmicos – ele se refugiu para escrever mais do que já escreve.
Tenho forte a imagem dele ainda lá pelos anos 2000, um médico que fez da cultura sua vida, um Pedro Nava em versão contemporânea.
Se batesse à porta, Mariza Fernandes me receberia e me convidaria a participar do grupo folclórico de dança italiana, o Tarantolato.
Flávio Lins, outro de meus professores a ensinar o idioma de meus ancestrais, estaria por lá também, preparando suas aulas memoráveis.
Por lá deve andar também Salvador Caruzzo, hoje no Oriente Eterno, um italiano que por anos cuidou desse patrimônio cultural, desta casa que é como um portal que abre o mundo de ancestrais para italianos no nome como eu.
Por ali ainda há o Sapore di Calabria, com as Polpette mais divinas que já comi, que aprendi a comer com minha mãe, desde sempre no restaurante cuidado pela Família Ventoso.
São passeios que vou fazendo à vista do meu carro, de noite, por minha Juiz de Fora.
Passo pela Catedral, uma imponente igreja que marca a cidade, diante da qual aprendi a fazer o sinal da santa-cruz.
Avanço e agora me contento em ver a antiga sede da Prefeitura Municipal.
Eu me pergunto como em um prédio diminuto cabia a estrutura mastodôntica do executivo local, tão pródigo em cargos?
Havia menos gente lá, antes, de certo, mas me parece muito pequeno para o pioneirismo da cidade com 100 mil habitantes já pela década de 1920.
Contento-me em ver a sede do Fórum, um belo prédio, que vai resistir, mas em futuro não muito distante será a sede da Câmara.
Vão-se as instituições, ficam-se os prédios, ainda bem para essas edificações históricas, ainda bem para todos nós.
A Casa do Povo de Juiz de Fora fica em seu coração, tomando ar do Parque Halfeld ao lado. É um fato político, acima de tudo, além do arquitetônico, e se todo mundo passa de carro, de moto, de ônibus, de bicicleta, a pé que seja, pela Rio Branco, havemos de envidar esforços para que o Legislativo nunca saia daquele berço natural do povo.
Palácio Barbosa Lima – eis o nome do edifício onde se abriga a Casa das Leis juiz-forana.
Foi erguido graças ao empenho de (Joaquim) Barbosa Lima, juiz de direito, para ali ser o local a abrigar a Justiça e o Legislativo, iniciando-se com uma campanha popular de arrecadação de fundos e terminando com a inauguração sob as hostes e vistas de Dom Pedro II, o Imperador que tanto gostava da cidade.
O Parque Halfeld tão bonito visto das janelas do meu carro, mais ainda quando visto do Morro do Cristo, tão belo visto também dos prédios que ficam a sua volta.
Resiliente: é um pedaço do verde que resiste.
Há também, não na Rio Branco, na Santo Antônio, a Igreja de São Sebastião dando toda sua proteção. Como seria a igreja invadida por prédios a sua frente? Não teria o charme que tem.
Portinari vive por aqui também, ainda hoje, com seu painel “As Quatro Estações”, na parede do Edifício Clube Juiz de Fora, o traço mais modernista da cidade.
Sigo pela Rio Branco, mas em vez de avançar mais rumo à garganta do Dilermando – fica para outo dia -, desço a Floriano, que possui status sociais variados ao longo do seu trecho, para passar pela Avenida Getúlio Vargas, no que já foi apenas de libaneses e dos prédios comerciais e bancários.
De noite não se tem aquele amontoado habitual de gente, espremida para pegar ônibus para todos os cantos da cidade, após dias extenuantes de trabalho.
As passarelas portuguesas estreitas não foram feitas para esse tanto de pessoas, mas a pressão econômica e social faz disso com as urbes, com as pessoas da cidade, indefesas contra as injustiças humanas.
De noite, com tudo mais pacato, revejo os vultos dos emigrantes libaneses tão importantes para nossa história.
Revejo-os num sonho acordado, mas me lembro da imensidão de pessoas que hoje passa por ali, muitas delas as mais sofridas da cidade e relegadas pela sociedade, pensando em como é difícil criar uma cidade realmente para todas as pessoas.
Sair da promessa para a ação custa.
Ao final, posso escolher virar a Rua Santa Rita e voltar à Avenida Rio Branco, virar para a Avenida Itamar Franco – não sem antes fazer força para não dizer Independência, o nome de antes que perdura em meu coração –, ou seguir para a Praça da Estação ou, ainda, rumo ao Poço Rico, ao Granbery, de tantas e recônditas recordações.
Meu saudosismo me leva para a última opção, até esqueço como é bonito ver a Praça da Estação de noite, aquele lugar que tantas vezes atravessei movimentando-me da margem esquerda para a margem direita do Rio Paraibuna, em criança e em adolescente, saindo do conforto do meu lar na Césario Alvim para ser educado no Colégio Carmo, no Granbery, nos cursos de idiomas, passear pelas livrarias, ver os filmes de que gostava nos cinemas que quase todos não mais existem.
Indo para o Poço Rico passo em frente ao Castelinho da Cemig, algo de minhas primaveris recordações, mas estou a fim mesmo de ver o Marco do Centenário, na obra de Di Cavalcanti, no seu mosaico de azulejos, fechado a minhas vistas neste momento, ainda sendo restaurado do incêndio por acidente que quase o retirou definitivamente da nossa visão.
Não avanço mais, subo rumo ao Bom Pastor, Alto dos Passos, e passo pelo burburinho noturno da cidade, hoje em silêncio sepulcral por pandêmicas razões.
Retorno pela Rio Branco e vou até a Delfim Moreira para chegar ao Granbery, da primeira partida de futebol no Brasil – os juiz-foranos somos ufanistas e nos agarramos a qualquer passado de glória provado, duvidoso ou inventando – e das partidas de futebol que ali joguei nos duros anos de aluno, hoje apenas positivamente lembrados.
Relembra-me meu eterno professor Paulo Medina, granberyense da melhor cepa e grande jurista de nossa terra, que a tão propalada primeira partida teria sido na primeira sede do Colégio, na Rua Bernardo Mascarenhas.
Mas como são às minhas memórias, volto ao que vi em meu “baú de ossos”, de mediana qualidade e brevíssima extensão.
Voltemos ao meu périplo.
Pergunto-me: e aquele golaço que fiz num jogo preparatório para o interclasse? 97 ou 98. Nossa M2, a dos intelectuais e de alguns descolados, sapecou um 3 a 2 na M3, a classe que sempre ganhava tudo.
(Entenda: foi algo como o Bangu de hoje ganhar do Flamengo de hoje ou de 1981 ou de 2019.)
Dei um cruzamento magistral, como lateral-direito avançado, para um colega de classe. Ele não fez o gol, mas aquele jogo me fez acreditar que, com fôlego, sem ter tido que usar óculos, eu seria menos perna-de-pau.
Esse garoto ingênuo se foi.
Não citarei todos os professores e as professoras do Granbery, nem os amigos e as amigas que fiz ali, para não ser injusto. Mas parte dos meus afetos perambula entre os prédios modernos ou mais históricos como a Casa de Mr. Moore, Vittorio Bergo e Irineu Guimarães.
Como não estou pelas imediações da Rua Olegário Maciel, não consigo falar muito sobre o Colégio Carmo também, onde aprendi a ter disciplina no estudo pelo rigor das irmãs e aptidão pedagógica das minhas professoras, e onde tomei gosto pelo futebol com o “tio” William Schultz.
Perto do colégio, estaria pelas imediações da Tecol, empresa de meus pais, parte importante da vida de toda a família, de modo que poderia escarafunchar mais o baú de minhas memórias e escrever parágrafos e mais parágrafos.
Mas sou um escritor fidedigno e não escrevo por escrever: apenas descrevo esse passeio de carro num dia qualquer de uma pandemia, acontecimento singular, e sou fiel na transcrição dos locais por onde passo com meu carro.
Estou em outra parte da cidade. Desço rumo a Espírito Santo e ao fim da rua está lá a “Loja Benso di Cavour”, com um G e um compasso, lembrando as raízes carbonárias e maçônicas de uma cidade nascida no II Império.
Naquela parte da Espírito Santo, casas antigas resistem, palácios mais ou menos escondidos.
Por falar em palácios, estou indo rumo à rua Antônio Carlos ver o Castelinho dos Brachers, a casa por onde ciência, artes e política dominaram a Juiz de Fora do início da segunda metade do Século XX, mesmo com os tristes anos de chumbo, pelo que temos alguma culpa: um general de pijama, comandante da Região, resolveu precipitar um golpe, que os generais mais graduados e os governadores de Minas e São Paulo iam retardando.
Mas já havia comunistas a se perseguir. Muitos deles frequentaram a casa do Sr. Waldemar Bracher, onde imagino Carlos Bracher, ainda e para sempre o Carlinhos, fazendo suas primeiras telas, conhecendo sua bela Fani, de tão belas telas também: amor e artes num casamento de décadas.
Mais adiante passo pela igreja do Rosário, no Granbery ainda, bairro em que metodismo e catolicismo conviveram e convivem.
Depois de lembrar dos quadros de meus amigos, já estou de novo na Rio Branco, mas pego atalho pelo São Mateus, e já me vejo na Olegário Maciel para admirar a Melquita, a prova cabal dos libaneses na cidade.
A igreja disco-voador da minha memória de infância, de uma Juiz de Fora cheia de discos na década de 80, pois ainda havia o Supermercado Disco perto da via férrea, lá pelos lados da sede do Tupi.
A praça em frente da igreja me traz uma paz. Paro o carro, baixo os vidros e fico imaginando nosso privilégio de ter uma das primeiras igrejas ortodoxas em solo brasileiro.
Subo a Olegário toda, passo pelo Dom Bosco, um bairro também de recordações primaveris, onde fui a um terreiro, quando novo, junto de minha mãe.
Guardo as impressões, minhas primeiras impressões com a cultura ancestral dos antigos escravizados que chegaram ao Brasil e que andaram pelas terras de Minas, andaram pelos cafezais da Zona da Mata, de Juiz de Fora, expatriados de seus lares e explorados como bens, propriedades de outrem.
Meu desatino, não destino, é a UFJF, a Casa do Saber de nossa cidade, que sempre esteve na minha vida, já quando caminhava pelo campus com meu pai em volta do lago e da praça cívica – nome bem ao gosto dos ditadores, pois não.
Por dezessete anos, fui um expectador de fora da UFJF. Passei no vestibular e passei a expectador interno.
Sempre somos apenas expectadores, pois até nossos protagonismos são episódicos. Alguém já disse isso?
É emoção demais correndo na cabeça, transcorrendo pelos dedos no teclado do meu computador, antes mesmo de chegarem as palavras à tela.
Fico um minuto diante da Faculdade de Direito da UFJF, onde concretizei alguns sonhos, deixei sepultados alguns outros e trouxe comigo outros ainda a realizar.
De repente, já estou na parte alemã da cidade, no bairro São Pedro, próximo ao Borboleta e ao Vale do Ipê, incrivelmente próximos, pois numa cidade de tantas montanhas, vários caminhos levam aos mesmos lugares.
Será que Juiz de Fora está fadada a não se desenvolver mais por esse traço urbanístico? Porque há décadas nos vemos andando em círculos.
É digno que se fale que a parte alemã congregaria as primeiras cervejarias do país, um legado último de emigrantes, na Juiz de Fora de africanos, italianos, libaneses e, finalmente, alemães.
Portugueses também, ora pois, mas não temos muito deles preservado em bairros, em monumentos, cidade que somos do II Império, da Independência.
Uma hora se passa dentro do meu carro. É hora de ir embora, não sem antes passar pela “descida do Privilège”.
Deixo a janela aberta, entra o friozinho da noite e com ele as recordações das vezes em que estive no Privilège, show do Emmerson Nogueira, aquele show surreal do Lobão, as namoradas, às vezes quase esquecidas, outras de viva memória, encontradas por aquela casa bonita e antiga na cidade.
Ao fim da descida, uma vista panorâmica impressionante de parte da cidade, impressionante porque a panorâmica mudou e vai mudando com a urbanização da cidade, à omissão do poder público, fazendo as pessoas desmatarem e causarem também poluição visual na montanha que somente devia ter a cor verde.
Uma hora, uma boa parte da cidade desbravada, e lá se vão uns 20 e poucos anos de lembranças, pois parei lá pelo ano 2007, 2008, antes de ter que sair um pouco da cidade, sem ela nunca ter saído de mim.
Confesso que fui às lágrimas, com a leitura.
Ah, Juiz de Fora, especialmente à noite… Tem algo de feérico nas lâmpadas que tremeluzem sob os olhos do Morro do Imperador. Quantos anos não passeei, sozinho, nas ruas vazias, em noites chuvosas, pensando em reinações do mesmo gênero?
Que nosso padroeiro lisboeta, o “doctor evangelicus”, Santo Antônio do Paraibuna, continue abençoando sua pena, meu amigo. Obrigado por me proporcionar esse momento de amor por uma terra!