Colunas

O inferno não é aqui

Foto: Faris Mohammed/Unsplash

Primeira esperança

Eu nunca irei para o inferno. É uma certeza. Isso, é lógico, se o inferno não forem os outros, como vaticinou Sartre (nesse caso, talvez eu até já o tenha experimentado). Ou se o inferno não estiver vazio e todos os demônios já não estiverem aqui, como anteviu Shakespeare (na certa prevendo, 410 anos antes, o governo Bolsonaro ou o Senado eleito no último dia 2 de outubro). Se o inferno corresponder ao inferno cristão, porém — o inferno medieval, o inferno do clichê das almas condenadas ardendo em chamas nas profundeza, o inferno dantesco —, para lá é certo que não irei.

Não se trata de uma confiança numa suposta suprema bondade que sei que estou longe de ter. Na verdade, minha convicção não está nas minhas pretensas boas ações, sobre as quais, admito, sou atormentada por dúvidas todos os dias. Está, isso sim, no célebre verso de Dante que estaria esculpido no portal do submundo: “Deixai toda a esperança vós que entrais”. E isso eu jamais poderia fazer. Porque deixar a esperança do lado de fora seria também me deixar lá.

Segunda esperança

Já me senti, no delírio de infância, a louca de Mário Quintana, que salta do 12° andar do ano para, “ó delicioso voo”, pousar incólume na calçada, outra vez transformada na meninazinha de olhos verdes que repete, bem devagarinho, para que os adultos não voltem a esquecer: “O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA”. Pensando bem, há na Esperança de Quintana um quê da Ismália de Alphonsus de Guimaraens, a também louca que, igualmente, se atira do alto de uma torre em busca de duas luas, a que brilha no céu e a que se reflete no mar. Como eu, a Ismália do poema também não vai para o inferno, porque é preciso carregar muita esperança dentro de si para tentar alcançar a lua, onde ela esteja. Ou para não deixar de sonhar com um pouco que seja de justiça.

Terceira esperança

Depois da meninazinha de olhos verdes, fui a esperança de óculos cantada pela Elis Regina. O José Luiz Ribeiro, meu diretor no Centro de Estudos Teatrais — Grupo Divulgação, deu a orientação com essas palavras mesmo, para eu entender quem era minha personagem (que, se não era a última que morria, era a última que entrava na peça).

O ano era 2004; a peça, “A fábula do destino”. Na história, Deus criava o homem, a mulher, a maçã, a serpente e, em seguida, expulsava os dois primeiros do paraíso. Daí em diante, o casal passava por um périplo de Fome, Trabalho, Dinheiro, Ganância (além de um Desempregado, uma Professora e um Menino) até chegar à — eu! — Esperança. Todos numa sequência de afetos (no sentido de afetar mesmo: o ser humano afetado pela Fome, afetada pelo Trabalho, afetado pelo Dinheiro, afetado pela Ganância, afetada pela Esperança) embalada por uma paródia da cantiga “A velha a fiar”.

Duas coisas me vêm à cabeça agora, quando me recordo da peça, 17 anos depois. A primeira é a caracterização do Trabalho, interpretado pelo ator Júlio Andrade. Com um macacão, um par de luvas e um capacete azuis de operário, barba cerrada no rosto, ele dizia suas falas com uma voz enrouquecida bem próxima do tom natural do então presidente Lula. Havia ali uma crítica, é óbvio,  na cor do figurino e na interpretação, mas que não passava nem perto das denúncias que o dramaturgo e diretor fizera, anos antes, com “Era sempre 1° de abril” e “O príncipe rufião”, aos dois antecessores de Lula da Presidência da República. Além disso, hoje, à distância, me parece bastante significativo que o então presidente, mesmo sob as críticas do texto, permanecesse, na peça, associado ao Trabalho. Não ao Dinheiro; não à Ganância. Mas ao operário que ascendeu ao posto mais alto da República, e que, mesmo submetido ao jogo de afecções do poder em que o país volteia, como numa brincadeira de roda, desde 1500 (“Estavam os povos indígenas em seu lugar…”, poderíamos cantar), não deixou de governar para os seus.

A segunda questão que me toma é sobre mim. Ou melhor, sobre a Esperança. Quando o Zeluiz me deu a referência — “Ela é a esperança de óculos” —, meu primeiro pensamento foi, como não podia deixar de ser, a da casa no campo. A Esperança, então, seria aquela que não quer nada além do espaço do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé, onde possa plantar seus amigos, seus discos, seus livros. E nada mais.

Não era bem isso, no entanto. E só quando vi o figurino pronto, às vésperas da estreia, é que compreendi. A Esperança de “A fábula do destino” era um grilo verde. Um grilo falante de óculos escuros. Um grilo bailarina. Uma consciência. A esperança é consciência. E talvez, na consciência, não caiba a ideia de nada mais.

Quarta esperança

Esta é uma semana de esperança. Na segunda-feira, 10 de outubro, foi dia de celebrar o primeiro ano de vida do meu filho Tito. E, nesses 365 dias mais um, sempre que olhei para ele, esperança foi tudo e só o que pude sentir.

Depois vêm, em outra sequência de afetos (esses já no sentido da ternura), os dias 12 — dedicado às crianças, futuro em estado bruto, e à padroeira do Brasil (que, espera-se, acreditando-se ou não, rogará por nós) — e 15, homenagem aos que trabalham com e pela educação; aos que sabem, no esperançar de Paulo Freire, que mesmo o tempo de espera “é um tempo de que fazer”.

Na segunda à noite, um amigo querido me escreveu: “felicidades ao tito! fala que estamos com esperança”. Estamos. E, porque não vamos soltá-la de jeito nenhum, o inferno não continuar tentando ser aqui.

Sair da versão mobile