Colunas

Isso não é educação, NEM lá, NEM cá

Manifestação pela revogação da Lei do Novo Ensino Médio (Foto: Aloísio Morais/jornalistaslivres.org)

ATO I, cena 1

Às vezes as profissões são decididas numa virada de curva. Minha mãe era adolescente prestes a sair do ginásio (embora, desde 1971, essa etapa do ensino, hoje conhecida como ensino fundamental 2, já não se chamasse mais assim) e ingressar no colegial (ou seria 2° grau?) quando fez sua escolha num rompante. Naquela época, mais de 45 anos atrás, ingressar no curso Normal, de formação de professores para atuar especificamente na educação infantil e nos primeiros anos do ensino básico, exigia teste vocacional. Pelo exame, ela tinha aptidão, o que não implicava necessariamente vontade. Tanto que cogitou alterar para o curso científico, para o qual seguiam os estudantes que se preparariam para o vestibular. Na hora da troca, porém, identificou que na sala do científico estava um colega que a perturbava há tempos. Voltou da porta mesmo e, assim, nasceu uma professora.

Cena 2

Minha mãe só fez faculdade anos depois, quando eu já estava na pré-escola. Licenciatura curta em Estudos Sociais no CES (Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora). Licenciatura curta não existe mais, ao menos sem outro diploma de nível superior antes. Estudos Sociais, que correspondiam à área das ciências humanas formada pela História e pela Geografia — e que no 2° grau se desdobrava também na OSPB (Organização Social e Política do Brasil) —, também não. Ainda assim, o teste estava certo e minha mãe lecionou quase 40 anos no mesmo Colégio Santa Catarina em que se formou.

Cena 3

Perdão se me perco nas nomenclaturas. A memória não necessariamente caminha no mesmo ritmo das reformas educacionais. Além disso, nomes pegam e juiz-foranos sabem disso: durante muito tempo a geração da minha mãe continuou localizando a Benjamin Constant como a rua do Disco; para ir para a aula de inglês, às vezes eu descia no ponto do Rei do Arroz, mesmo que esse mercado estivesse fechado fizesse anos; há mais de uma década a Avenida Itamar Franco insiste em ser Independência. Em 1999, meu primeiro ano, eu ainda chamava de científico ou 2° grau o que já era ensino médio desde a LDB (Lei de Diretrizes e Bases) de 1996.

ATO II, cena 1

Apesar de trabalhar numa entidade educacional há dez anos, foi só há bem pouco tempo, admito, que compreendi o porquê de o ensino médio também já ter sido chamado de científico. Foi meu sogro quem me lançou essa luz, quando contou, numa conversa aleatória, ter cursado o clássico. A etapa secundária da educação básica, na verdade, podia ser as duas coisas. Ou as três: clássico, científico, normal (os nomes são até irônicos). Tem uma matéria de 2017 publicada na Folha de S. Paulo que resume bem: em 1942, durante o Estado Novo, o curso secundário foi dividido entre clássico, com ênfase em filosofia e em línguas, e científico, focado em ciências e desenho. Quatro anos depois, em 1946, o governo Dutra criou o ensino normal para formar docentes de escolas primárias, incorporando ao currículo caligrafia, trabalhos manuais e economia doméstica. A matriz curricular, somada ao fato de que as normalistas (a escolha do artigo aqui já deixa evidente) eram mulheres em sua esmagadora maioria, ilustra muitas questões relacionadas à desigualdade de gênero no Brasil e à divisão sexual do trabalho. Tendo em vista que a docência na educação infantil e na primeira fase do ensino fundamental continua sendo majoritariamente feminina, bem como que os salários nessas duas fases são  geralmente inferiores aos pagos no restante da educação básica, percebe-se que a situação não mudou quase nada.

Cena 2

Durante quase 40 anos, minha mãe foi uma dessas mulheres: menos valorizada por sua formação não lhe permitir dar aulas para o ensino médio, muito menos para o superior; ganhando menos por optar, por vontade mesmo, permanecer exclusivamente na primeira fase do ensino fundamental. Ela talvez não saiba, mas, além disso, a despeito de ter exercido sua profissão-vocação com maestria, foi vítima de um dos maiores crimes cometidos contra a educação brasileira. A licenciatura curta se encaixava nos objetivos dos acordos MEC-Usaid firmados pelo governo militar. A proposta, conforme o geógrafo Rui Ribeiro de Campos no artigo “Golpe nas Ciências Humanas: 1964 e Estudos Sociais”, era assegurar a “formação rápida de profissionais para a urgente necessidade de utilizar tecnologias (importadas) mais modernas”. Segundo ele, o país “precisava de mais mão-de-obra especializada e a saída era a rápida profissionalização aliada à privatização do ensino, ‘mais eficiente’ e menos oneroso para o Estado”. Por sua vez, o ensino de Estudos Sociais, no autoritarismo do regime militar, teve como consequência a quase extinção dos cursos de licenciatura de Geografia e História, assim como o retrocesso político-cultural-social do conteúdo destas disciplinas e a perda de importância delas no processo educativo.

Cena 3

Fiz uma reportagem sobre isso há quase dez anos, na edição da Revista Conteúdo sobre os 50 anos do golpe civil-militar de 1964. Sob o título “Estilhaços do regime militar”, o texto apontava como, além da violência e da perseguição político-ideológica a docentes e estudantes, o comprometimento da qualidade da escola pública está entre os principais males causados pela ditadura à educação brasileira. O modelo tecnicista e a sanha privatista começaram ali. Mais de cinco décadas depois, a “deforma” do ensino médio imposta pelo governo de Michel Temer também.

ATO III, cena 1

Não sei se posso dizer assim, mas clássico, científico e normal se constituíram, de certa forma, como itinerários normativos que, ao logo do tempo, foram sendo superados. Reintroduzir esse conceito e essa divisão representa, inclusive, um retrocesso em relação à LDB de 1996, que aprovou a importância de uma formação única, propedêutica, ou seja, com cursos introdutórios de cada disciplina nas diferentes áreas de conhecimento para todo mundo.

Não é por acaso, contudo, que o NEM (Novo Ensino Médio) elimina de alguns dos itinerários formativos a serem supostamente escolhidos pelos estudantes disciplinas consideradas fundamentais para a reflexão e a formação crítica, como Filosofia, Sociologia e até mesmo História e Geografia, o que evidencia que a perda de relevância imposta no passado como projeto político deliberado nunca foi completamente sanada.

Cena 2

Essa não é a única semelhança com os destroços de lá e então. Acrescente-se que o NEM permite que conteúdos sejam ministrados em sala de aula ou em formato virtual por indivíduos e instituições privadas com “notório saber”, independente de formação pedagógica, o que não só compromete gravemente a qualidade do ensino ofertado, como vai contra a luta em defesa da formação, acabando com as licenciaturas (as de Geografia e História, que um dia foram extremamente importantes no mesmo CES onde minha mãe se formou, fecharam antes mesmo de a instituição tradicional mudar de nome e, como centro universitário, se tornar UniAcademia). Não só com as licenciaturas, aliás, mas a própria profissão docente.

A princípio, essa possibilidade do “notório saber” limitava-se ao ensino técnico e profissionalizante, mas sempre esteve aberta a prerrogativa de extensão a todas as modalidades. E é mais do que evidente a quem interessam mudanças desse tipo: ao setor privado, que poderá, de um lado, fechar convênios com estados e municípios para a oferta de “serviços” de educação e, por outro, elevar suas mensalidades sem que para isso tenha efetivamente de assegurar que os trabalhadores tenham todos os seus direitos assistidos. Tem-se, com isso, professores e estudantes submetidos a um modelo tecnicista, privatizante e pouquíssimo reflexivo.

Cena 3

Tem-se ainda a exclusão. Nem oferta nem direito de escolha de todos os itinerários estão efetivamente garantidos, haja vista que a lei do NEM não assegura os recursos para tanto e tampouco as escolas públicas têm essa estrutura. A falta de oferta exclui opções; a carga horária exclui estudantes do período noturno que precisam trabalhar durante o dia; o percentual de EaD (educação a distância) exclui quem não tem acesso à tecnologia.

Formação de mão de obra e privatização do ensino, foi o que escreveu Rui Ribeiro de Campos no artigo que citei. Não é por outro interesse que as grandes fundações privadas estão em peso dentro do MEC (Ministério da Educação), sendo mais ouvidas do que as entidades defensoras da educação pública, gratuita e de qualidade socialmente referenciada que fizeram de tudo para elegê-lo.

Às vezes o futuro é decidido numa virada de curva. Noutras nem futuro há. Lá atrás, no entanto, num colégio particular de classe média, minha mãe teve escolha. Quantos agora vão realmente ter?