Colunas

Diante do fim do mundo

(Foto: https://www.foragarimpoforacovid.org/)

I.

No dia 13 de julho de 2019, me espremi no corredor externo no número 6 da Praça da Matriz, no centro histórico de Paraty, para saber como o mundo acaba. Na casa lotada que serviu de sede para o Instituto Moreira Salles na 17ª edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), o fim do mundo e as ideias sobre como adiá-lo se apresentaram como vislumbres, enquanto eu tentava enxergar o escritor Ailton Krenak e a antropóloga Aparecida Villaça, os palestrantes da tarde, pelas frestas da janela e das cabeças — a dos que estavam na frente, mas também a minha. “O que significa a vitória de Jair Bolsonaro para os povos indígenas?”, perguntou, num determinado momento, o mediador Ricardo Teperman, sobre o governo que mal havia completado seis meses. Aparecida não titubeou: “Uma tragédia”.

II.

Por ser meu interesse de pesquisa, tendo sido chave de leitura para minha tese de doutorado a respeito dos mortos sem sepultura deixados pela ditadura civil-militar de 1964 a 1985, a palavra tragédia me é muito cara e, por isso mesmo, quase nunca concordo com seu uso leviano. Já escrevi, inclusive neste espaço, sobre as ressalvas ao lugar comum de que padece o termo na imprensa brasileira, em que todo acidente e/ou catástrofe se torna tragédia. No entanto, tendo a capitular diante da sabedoria da antropóloga. A eleição de Jair Bolsonaro não foi trágica em si, porque era perfeitamente evitável. Aliás, esperava-se que tivesse sido facilmente evitada, por todo o horror que o então ainda candidato deixava explícito, como o fizera em todos os seus anos de vida pública (acuse-se Bolsonaro de todos os crimes, menos de estelionato eleitoral). Uma vez que tomou posse, porém, no dia 1° de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro deixou de ser apenas Jair Bolsonaro — de capitão do Exército a deputado parasita do baixo clero — e passou a ser, como seus próprios asseclas o tratam, “o mito”. E, como mito, encarnou, de fato, a fábula representada no ciclo trágico: Bolsonaro deixou de ser apenas Bolsonaro e transformou-se numa fatalidade inexorável, incontornável e irremissível que se abateu sobre a existência humana.

III.

“Não lembro a última vez que fiquei sozinho pra refletir, que li um livro ou que me olhei no espelho e me orgulhasse de mim.” Eu até poderia ter escrito esta frase do ator Luis Navarro publicada em (e já apagada de) seu perfil no Instagram no último fim de semana. Poderia, a não ser por duas exceções: a flexão de gênero e a continuação/objetivo do post, cujas outras palavras serviram para comunicar não um divórcio, mas um abandono. Também não me lembro a última vez que li um livro, Luis. Minto, lembro sim, foi na semana passada, a única em que realmente tirei de férias de todos os trabalhos, exceto os cuidados com o meu filho, semelhantes aos que impediam o ator de se “reconectar”. Mas antes não me lembrava não.

IV.

A irresponsabilidade paterna é uma das formas pela qual o mundo de inúmeras mulheres e crianças acaba, todos os dias, mas esse é um fim que merece um texto só seu. Citei-o, no entanto, porque este aqui fala sobre outro tipo de abandono e sobre outro tipo de pater, a tal da pátria. E também porque eu era uma pessoa que lia livros. Muitos. Entre os quais os que Ailton Krenak e Aparecida Villaça lançaram naquele fim de tarde, em Paraty. Dele, em “Ideias para adiar o fim do mundo”, guardei que somos “alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos”. E que “se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos”. Dela, em “Paletó e eu”, em que conta a relação com seu pai indígena do povo Wari, marquei que “lhe perguntei certa vez se não odiava os brancos por isso [parentes próximos alvejados e mortos por seringueiros], todos nós brancos, e ele, gentil como sempre, me respondeu que eu e meus parentes não tínhamos nada a ver com isso, pois vivíamos muito longe. Sou-lhe grata por esse perdão”.

V.

Pensei bastante em Ailton e Aparecida nos últimos dias. Assim como pensei na entrevista que fiz, em junho passado, na TV Contee, com Eliesio Marubo, do povo Marubo, procurador da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), e com Luis Ventura Fernandez, secretário executivo do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), após os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips. E assim como pensei no meu amigo Evandro Medeiros, professor da Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto), e na também professora Lara Linhalis, sua parceira de universidade e de pesquisa, que, anos luz à minha frente — eu, ainda presa à reflexão ocidental deixada pela mitologia grega —, debruçam-se sobre a cosmovisão indígena como chave para tentar compreender nosso mundo (ou seu fim), bem como para imaginar e inventar outros mundos possíveis.

E penso também, como não poderia deixar de ser diante da tragédia (esta sim) escancarada das imagens e das notícias, em “A queda do céu”, do xamã yanomami Davi Kopenawa: “Nossos pais e avós desconfiavam dos brancos, e sempre temeram suas fumaças de epidemia. No entanto, jamais se preocuparam em saber o que os trouxera à nossa floresta. Não sabiam que tinham vindo para demarcar a fronteira do Brasil no meio de nossa terra. Mostraram-se hospitaleiros e amigáveis. Juntaram-se de bom grado para acompanhá-los, transportando sua comida e suas ferramentas de metal em grandes cestos cargueiros. Apenas observaram os forasteiros com curiosidade, enquanto abriam largas trilhas na mata e plantavam grandes pedras nas nascentes dos rios. Jamais teriam imaginado que, mais tarde, os filhos e netos daquela gente voltariam, tão numerosos, para tirar ouro dos rios e alimentar seu gado na floresta derrubada. Nunca pensaram que esses brancos um dia poderiam querer expulsá-los de sua própria terra”.

VI.

Ao contrário do que a gentileza de Paletó disse a Aparecida Villaça, todos nós brancos temos, sim, muito a ver com isso. E, se a tragédia é algo irremediável, para o mito Jair Bolsonaro, com tudo e todos que o apoiam e o cercam, não há perdão. 

Sair da versão mobile