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Meu tambor tá na rua

I. Congo

No próximo sábado, 11 de fevereiro, o Ingoma, grupo artístico-musical de Juiz de Fora que pesquisa cultura popular, sobretudo a ligada à tradição do congado e ao tambor mineiro, volta a fazer seu cortejo de mais de 70 tambores pelo Calçadão. Daqui a quatro dias, como os quatro passos do método usado nas oficinas, como os quatro tempos de um compasso. Volta depois de dois anos sem festa. Depois de três anos desde o último Carnaval. Depois de quase seis anos e meio desde que encostei uma baqueta na pele de couro de uma réplica de caixa de folia pela primeira vez.

II. Marcha grave

O Brasil tinha acabado de sofrer um golpe quando resolvi tocar tambor. Não foi de caso pensado. Faltava bem menos de um ano para que eu concluísse o doutorado, sem prorrogação de prazo, o que deveria ter feito com que eu concentrasse todo o tempo disponível na escrita da tese. Naquele momento, porém, qualquer coisa era mais interessante — e também infinitamente mais fácil — do que, poucos meses depois de um deputado obscuro ocupar a tribuna da Câmara Federal, na sessão oficial de votação de um impeachment, para homenagear um torturador, escrever sobre corpos deixados insepultos pela ditadura civil-militar brasileira. Corpos que, forçados ao desaparecimento, permaneceram sendo torturados mesmo depois de morrer.

Foi a Flávia Lopes, amiga e companheira de O PHAROL, quem me convidou. Estávamos no Forum da Cultura, que por muitos anos foi como minha segunda casa, no coquetel de lançamento do livro “Breviário de cena”, escrito pela atriz, professora e também amiga Márcia Falabella. “Vamos fazer oficina de tambor?” Aceitei por vários motivos, embora nenhum forte o bastante. Porque eu era uma atriz envergonhada de não saber tocar um único instrumento musical sequer; porque seriam só dois meses, que passariam rápido, se os céus ajudassem; porque a pessoa muito simpática que respondeu ao meu e-mail arranjou uma vaga para mim, mesmo que já estivessem esgotadas, e fiquei sem jeito de dizer que não queria mais.

E então, na primeira aula, já na segunda quinzena de outubro de 2016, toquei uma marcha grave e cantei uma marcha bem bonita na Casa de Cultura de Juiz de Fora, ao lado de dezenas de pessoas que eu nunca tinha visto. E com o corpo em marcha, o pensamento em marcha, o país em marcha, perdi toda e qualquer possibilidade de dizer que não queria mais.

III. Serra abaixo

Era 16 de fevereiro de 2017 quando os tambores começaram a soar, uníssonos, no Parque Halfeld, com o toque que, a partir desse dia, se tornou meu preferido. No comando, a voz de Maurício Tizumba avisava: “Meu tambor tá na rua/ Meu tambor tá rua/ Meu tambor tá na rua, povo bom/ Meu tambor tá rua”. Eu tinha aprendido o Moçambique Serra Abaixo, nome do ritmo que deu início ao aquecimento dos tambores do Ingoma naquela tarde, uns dois dias antes, nos ensaios que antecederam a chegada do convidado ilustre, um dos principais responsáveis pela valorização da cultura do tambor mineiro (que, aliás, com as devidas inicias maiúsculos, é o nome de seu grupo).

Por ser um aprendizado recente e por eu estar longe de ser uma exímia musicista, tocava o pequeno tambor de lata apreensiva, concentrada em não errar. Aos poucos, no entanto, as mãos pareceram engrenar o movimento sozinhas, como se as baquetas flutuassem. Como se mãos e baquetas dançassem juntas desde sempre. “Meu tambor tá na rua, povo bom/ Meu tambor tá rua”.

IV. Serra acima

Muita gente foi pra rua nesse ano, e não só no carnaval. Do golpe de 2016 em diante, ladeira abaixo foi o que desceu o país, mas não sem que a batida do confronto entre povo e governo reverberasse. No dia 28 de abril de 2017, pouco mais de dois meses depois do primeiro cortejo do Ingoma de que participei, mais de 40 milhões de trabalhadoras e trabalhadores de todo o Brasil aderiram à greve geral contra a reforma da Previdência. Em Juiz de Fora, depois da concentração na Praça da Estação, a passeata tomou a Avenida Francisco Bernardino. Lembro-me especificamente de ver lá o Lucas Soares, músico, compositor, arranjador, professor de tambor mineiro e coordenador do Ingoma. Como já o tinha visto no ano anterior, antes mesmo de ser sua aluna, no Grito dos Excluídos, transformado então num “Fora, Temer”. Como continuei vendo-o — e seguindo ao lado dele, bem como de todo o grupo — muitas manifestações depois.

É verdade que Temer não caiu. E que a reforma da Previdência foi aprovada no ano seguinte. Assim como, antes, não ia ter golpe e teve. E como, depois, o ele não, infelizmente, tornou-se sim. Há uma lição, contudo, que a tradição ensina. Nos ternos de moçambique do interior do estado, o Serra Abaixo é tocado quando é preciso “soltar” o cortejo, colocar a falange para andar. Já o Moçambique Serra Acima é usado, na maioria das ocasiões, quando é preciso segurar o cortejo, fazer com que ande mais devagar. O país rolou pela ribanceira, mas muita gente também desceu — o morro, o prédio, a torre, o castelo, a nuvem — e foi ser povo bom colocando sua voz e seu tambor na rua. Agora é carnaval de novo, acho que desde 30 de outubro, e outro groove já começou. Com paciência, contando os passos (1, 2, 3, 4), a gente sobe outra vez.

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