
O Ministério Público Federal (MPF) instaurou um inquérito civil para investigar e propor medidas de reparação às vítimas da antiga política de internação compulsória no Hospital Colônia de Barbacena. A iniciativa, formalizada pela Portaria nº 204, de 5 de setembro de 2025, aprofunda a atuação do MPF no campo da Justiça de Transição — processo voltado à superação de períodos marcados por graves violações de direitos humanos.
Fundado em 1903, o Hospital Colônia tornou-se símbolo do tratamento desumano dispensado a milhares de pessoas no Brasil. O que ocorreu dentro de seus muros ganhou notoriedade a partir de uma série de reportagens publicadas pelo jornal Tribuna de Minas em 2012, que originaram o livro Holocausto Brasileiro – Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes no Maior Hospício do Brasil (Geração Editorial, 2013), da jornalista Daniela Arbex.
Os relatos revelam que internos eram obrigados a andar nus, defecar onde dormiam e até enterrar seus próprios mortos. “A vida dos internos envolvia um cotidiano de muita limitação, de frio, de fome, de maus-tratos físicos e tortura psicológica”, escreveu Arbex.
As condições subumanas resultaram na morte de cerca de 60 mil pessoas entre as décadas de 1930 e 1980. Muitas das vítimas sequer apresentavam transtornos mentais. Eram, em grande parte, pessoas marginalizadas socialmente: homossexuais, prostitutas, alcoólatras, epilépticos, militantes políticos e mulheres que haviam perdido a virgindade antes do casamento.
Justiça de Transição e busca por reparação
O inquérito instaurado pelo MPF insere-se no âmbito da Justiça de Transição, estruturada em quatro eixos principais: memória e verdade, garantia de não repetição, reparação às vítimas e responsabilização dos envolvidos. O objetivo é investigar violações do passado, assegurar que elas não se repitam e promover a reparação de quem sofreu com os abusos.
O procedimento preparatório que originou o inquérito civil (nº 1.22.000.000883/2025-00) busca especificamente medidas de reparação. A condução ficará a cargo da Procuradoria da República em Minas Gerais, sob responsabilidade do procurador Angelo Giardini de Oliveira. O prazo inicial para conclusão é de um ano.
Precedente: o caso Damião Ximenes Lopes
A portaria que instaurou o inquérito cita como precedente a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que, em 2006, condenou o Brasil no caso de Damião Ximenes Lopes, morto em 1999 após ser internado na Casa de Repouso Guararapes, em Sobral (CE). Diagnosticado com transtorno mental, ele foi levado à clínica — conveniada ao SUS e já denunciada por maus-tratos — para tratar uma crise, mas acabou vítima de agressões.
O corpo apresentava sinais de violência, embora o registro de óbito indicasse, primeiro, “morte natural” e, depois, “causa indeterminada”. Diante da omissão do Estado brasileiro, a irmã de Damião, Irene Ximenes Lopes Miranda, acionou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em novembro de 1999.
O caso foi aceito em 2001 e encaminhado à Corte em 2004. Dois anos depois, o Brasil foi condenado por violações de direitos humanos e obrigado a indenizar a família, fiscalizar os serviços de saúde mental, capacitar profissionais da área, investigar e punir os responsáveis, além de adotar medidas para evitar a repetição de episódios semelhantes. A Corte, contudo, reconheceu que o país não cumpriu as diligências necessárias para a responsabilização criminal, encerrando a supervisão dessa obrigação específica.