“No ano do centenário do Paulo Freire, ninguém mais do que eu quer voltar às aulas presenciais, mas deve ser com todos vacinados e no momento que estivermos prontos.” Foi assim que, em conversa com o jornalista Ricardo Miranda e com o repórter fotográfico Leonardo Costa, integrantes da equipe de O Pharol, a prefeita Margarida Salomão posicionou-se há alguns dias, pessoalmente, sobre um dos principais temas que têm dominado as discussões na cidade. Impasse que teve mais um capítulo nesta terça-feira (22), com a decisão da Vara da Infância e da Juventude de atender parcialmente o pedido no Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) quanto à retomada das aulas presenciais no município, suspensas em razão da pandemia da Covid-19.
Segundo informação divulgada pelo próprio MPMG, “a Justiça declarou a nulidade de atos administrativos formalizados pelo município de Juiz de Fora, que excluíam qualquer viabilidade de retomada das atividades educacionais de natureza presencial”. Assim, conforme o MP, o “município deverá aplicar a Deliberação do Comitê Extraordinário Estadual nº 129/2021 para retorno das atividades educacionais presenciais, seguindo o Plano Minas Consciente em relação ao enquadramento das atividades nas ondas de classificação da pandemia para a microrregião.” Na sentença, o juiz Ricardo Rodrigues de Lima determina o retorno do ensino presencial, ainda que no modelo híbrido, a partir do início do próximo semestre letivo.
Com a referência a Paulo Freire, Margarida marcou uma posição não apenas como prefeita, mas como professora. E invocou, ainda que de modo indireto, um conceito freiriano cujo nome, na esfera administrativa, tanto o Ministério Público quanto o movimento Escolas Abertas JF (formado por alguns pais e mães de estudantes de colégios particulares da cidade) a têm acusado de usar indevidamente: o de autonomia.
Autonomia é um termo caro à educação. À Constituição também. Nesta, além dos poderes independentes e harmônicos da República, está assegurado que a “organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos”. O argumento está presente na resposta da PJF dada nesta terça-feira (22) à notícia da decisão judicial. Em nota pronunciada pelo secretário municipal de Comunicação, Márcio Guerra, e postada em vídeo nas redes sociais, a Prefeitura anunciou “sua disposição de recorrer da sentença”.
“Embora reconhecendo a cautela do juiz com respeito à questão sanitária, pelas muitas qualificações que ele impõe à retomada das aulas presenciais, o município de Juiz de Fora reivindica a sua prerrogativa constitucional de regular a vida social no contexto da pandemia. Reforçamos, enquanto isso, o relato do nosso trabalho infatigável para preparar o retorno às aulas em condições de total segurança sanitária e o melhor aproveitamento pedagógico possível”, diz a nota.
O espaço escolar
Pedagogia da Autonomia é um dos mais famosos títulos dentro da obra de Paulo Freire. Nele, o educador e filósofo brasileiro, patrono da educação brasileira e reconhecido internacionalmente, faz algumas observações sobre o ambiente físico da escola e seu papel no ensino-aprendizagem. “Há uma natureza testemunhal nos espaços tão lamentavelmente relegados das escolas”, escreveu, assim como “Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço”.
E há. Não é por acaso, por exemplo, que as mesmas entidades educacionais que apontam os riscos de um retorno às atividades escolares presenciais sem controle efetivo da pandemia, como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, já ouvida por O Pharol , também se posicionem com veemência contra os projetos de autorização da educação domiciliar em tramitação no Congresso Nacional. Ou que os próprios professores tenham apontado os inúmeros prejuízos pedagógicos do ensino remoto adaptado adotado como medida emergencial desde o ano passado (e isso também já foi tratado, na mesma reportagem, por O Pharol).
Em outras palavras, a experiência do espaço escolar é, sim, de suma importância e tem feito falta. A questão é que a educação e a própria escola transcendem os tijolos das paredes e muros de uma instituição de ensino. No mesmo trecho de Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire reflete ser “uma pena que o caráter socializante da escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, de formação ou deformação, seja negligenciado”.
“Fala-se quase exclusivamente do ensino dos conteúdos, ensino lamentavelmente quase sempre entendido como transferência do saber. Creio que uma das razões que explicam este descaso em torno do que ocorre no espaço-tempo da escola, que não seja a atividade ensinante, vem sendo uma compreensão estreita do que é educação e do que é aprender”, escreveu. “No fundo, passa despercebido a nós que foi aprendendo socialmente que mulheres e homens, historicamente, descobriram que é possível ensinar. Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas, nos pátios dos recreios”.
Isso significa que o espaço escolar é, sim, necessário às crianças e adolescentes, mas que assim também são outros espaços, porque educação não se traduz em conteúdo, mas em relação. Acontece que outros espaços, outras convivências e outras relações também se encontram — ou ao menos deveriam se encontrar — interditados ou ao menos limitados no necessário, embora duro, distanciamento imposto pelo enfrentamento à pandemia. Da mesma forma, outros espaços, outras convivências e outras relações têm buscado se constituir remotamente, apesar dos sabidos e inúmeros prejuízos.
O imbróglio judicial
Na decisão proferida nesta terça-feira, o juiz Ricardo Rodrigues de Lima, da Vara da Infância e da Juventude de Juiz de Fora, afirma que não há ataque à autonomia do município. “A decisão travada na presente ação não impõe o risco de invasão pelo Poder Judiciário de competência discricionária do Administrador Público, pois o que aqui se pretende não é a simples substituição de uma vontade do administrador, mas sim o controle de legalidade de atos administrativos e a imposição de obrigação de fazer para dar efetividade a direito fundamental”, diz na sentença. Alega ainda que enquanto “o mundo se organiza para a retomada de atividades, o que não tem sido diferente em vários importantes Estados e grandes Municípios do Brasil, Juiz de Fora está com braços cruzados em matéria de educação e nada propõe para assegurar tal direito fundamental dentro de um mínimo razoável, ainda que com as adaptações impostas pelas circunstâncias”.
Enquanto isso, na outra ponta, o município está prestes a concluir, nesta semana, a vacinação de todos os trabalhadores em educação, seguindo os critérios de prioridade do Plano Nacional de Imunização (PNI) e a logística de distribuição de vacinas feita pelo governo do estado. Também há um grupo de trabalho (GT) no âmbito da Prefeitura, discutindo as diretrizes e protocolo para as aulas presenciais. Do GT fazem parte representantes das secretarias de Educação e de Saúde do município, da Vigilância Sanitária, do MPMG, da Câmara Municipal, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), do Sindicato dos Professores (Sinpro-JF) e do Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino da Região Sudeste de Minas Gerais (Sinepe/Sudeste), além de representantes de pais e mães de estudantes do setor privado de ensino.
Em nota pública divulgada no fim da tarde desta terça, o Sinpro-JF, que faz parte do GT, afirmou que as “diretrizes respaldadas pela categoria que orientam o retorno seguro incluem a adoção de medidas de biossegurança com embasamento científico, como a garantia de ventilação, redução do número de alunos e distanciamento dentro da sala de aula; o fornecimento de materiais de proteção como máscaras do modelo PFF2; a testagem; a fiscalização e a contratação de mais trabalhadores; o protocolo para o transporte escolar; o treinamento dos educadores e a campanha de conscientização com a comunidade escolar; a imunização completa dos profissionais; a garantia de emprego para pessoas com comorbidades; além de regras claras para o ensino híbrido”.
O sindicato também destacou que “conforme vem sendo debatido em seminário e nas assembleias dos trabalhadores ao longo desses meses, defende o retorno das aulas presenciais com segurança sanitária” e que “cobrará, de forma intransigente, tanto do poder público quanto dos estabelecimentos privados de ensino, as condições para isso”.
Que escolas?
Um dos pontos determinados na sentença da Vara da Infância e da Juventude, como destacado pelo MPMG, é que o município aplique a Deliberação do Comitê Extraordinário Estadual 129/2021. Logo no primeiro artigo, a norma em questão estabelece que, no processo de retorno das aulas presenciais, a administração pública estadual, os municípios e as instituições de ensino deverão observar as diretrizes de biossegurança; complementariedade e alternância entre as atividades presenciais e o ensino remoto; comunicação clara e objetiva sobre o retorno; conscientização da população; direito de os responsáveis pelos estudantes optarem pelo ensino presencial ou remoto; retorno gradual; ensino híbrido; implementação de medidas de fiscalização das condições epidemiológicas e da pandemia; e universalidade, isto é, as diretrizes e os protocolos de biossegurança aplicáveis ao retorno presencial das atividades de ensino são de observância obrigatória para todas as instituições, públicas ou privadas, da educação infantil ao ensino superior.
A Deliberação 129, contudo, diz mais. Enfatiza, por exemplo que, fica “autorizado o retorno gradual e seguro das atividades presenciais na rede pública estadual de ensino infantil, fundamental, médio, incluído o técnico, e superior nos municípios localizados nas regiões qualificadas como Onda Amarela, conforme classificação e organização regional do Plano Minas Consciente” e que a “autorização para o retorno gradual e seguro das atividades presenciais de ensino de que trata esta deliberação se aplica, por adesão, às unidades: I – da rede pública municipal de ensino infantil, fundamental, médio, incluído o técnico, e o superior, por decisão do município; II – da rede privada de ensino infantil, fundamental, médio, incluído o técnico, e o superior, por decisão da instituição escolar.” Vale lembrar que no dia 11 de junho, quando da decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) que permitiu o retorno às atividades escolares presenciais no estado, a própria Secretaria de Estado de Educação (SEE) informou que o retorno seria gradual, nos municípios na onda amarela ou verde do Plano Minas Consciente, “onde a prefeitura não apresentar restrições”.
Apesar disso, sob pena de R$ 5 mil por dia de descumprimento de cada determinação, o juiz Ricardo Rodrigues de Lima cobra, em sua decisão, que a PJF informe, num prazo de dez dias, quais as escolas públicas municipais que atendem ou não os protocolos sanitários estabelecidos em nível estadual e municipal. Quanto às escolas que não se enquadram, determina que o município apresente, num prazo de 30 dias, relatório de inspeção da Vigilância Sanitária apontando as pendências que impossibilitam o retorno nessas unidades.
A falta de referência a outras redes, sobretudo ao setor privado, foi sentida, até porque são as famílias de estudantes dessas escolas que têm assento no GT e é de algumas delas que vem a maior pressão pelo retorno presencial. “Cabe ressaltar que a decisão judicial, ao desenhar condicionantes para a retomada das aulas presenciais nas redes públicas, ignora que grande parte das escolas particulares também não apresenta condições de segurança para a retomada das aulas presenciais, o que exige mais fiscalização”, observa, em nota, o Sinpro-JF.
Sobre essa questão — as escolas privadas de Juiz de Fora têm, em sua integralidade, condições infraestruturais e de pessoal de retornar às atividades presenciais cumprindo os protocolos sanitários? —, o Sinepe/Sudeste respondeu a O Pharol que “desde o início da pandemia, em março do ano passado, as instituições privadas de ensino de Juiz de Fora, associadas ao Sinepe/Sudeste, estão se preparando para o retorno”.
“Ainda no final do ano passado, firmamos o Compromisso Público do Sinepe/Sudeste para Retomada das Aulas Presenciais com Segurança. Nossas escolas já estão preparadas com estratégias e protocolos, prontas a retornar”, reforçou a presidente do sindicato patronal, Anna Gilda Dianin.
Essa não é a realidade, por exemplo, da capital do estado, onde, apesar de liberadas para retomar as atividades presenciais do ensino fundamental, diversas escolas particulares decidiram adiar o retorno. E isso mesmo depois de a Prefeitura de Belo Horizonte revogar os protocolos que esses estabelecimentos alegaram onerar demais seus orçamentos por adequação de espaço e contratação de pessoal.
“As instituições estão prontas, porque foram se preparando ao longo da pandemia. Realmente, há um custo alto para o retorno, mas, o prejuízo de ficar fechado, principalmente para a educação infantil, é incalculável, inclusive com o fechamento definitivo de algumas. As instituições estão orientadas, inclusive quanto ao treinamento de seu pessoal docente e auxiliares de administração escolar”, garantiu Anna Gilda sobre a situação em Juiz de Fora. “Enfim, nossa posição é no sentido de retornar, com segurança, adotando o modelo híbrido e todas as prevenções possíveis. É a única forma de prejudicar os danos provocados não só no aprendizado, mas, na própria situação socioemocional da comunidade acadêmica.”
De todo modo, estabelecido ou não o retorno, as taxas de ocupação de leitos e de transmissão da Covid-19 seguem, segundo as autoridades sanitárias, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), não podendo ser ignoradas na equação.