Conjuntura

A Prefeitura de Juiz de Fora prepara um modelo de subsídio para o transporte público e isso é uma boa notícia

Modelo atual do sistema de transporte público faz com que o usuário pague pelas gratuidades (Foto: Leonardo Costa)

A pandemia causada pela Covid-19 tem escancarado problemas sociais, de desenvolvimento e defasagem nas políticas públicas no Brasil. Com o transporte público, a situação não é diferente. O modelo de remuneração dos ônibus urbanos brasileiros tem como pilar a superlotação no transporte público, uma vez que os usuários pagantes arcam com a receita arrecadada pelas empresas de transporte.

Os desafios da nova realidade perpassam pela construção de um novo modelo sanitário, no caso do transporte público, de desaglomeração dos veículos. Para isso, é necessário questionar a forma de remuneração das empresas de ônibus e a participação do poder público no investimento em transporte.

Nesse aspecto, Juiz de Fora começa a se mobilizar. Como resultado da “Mesa de Diálogo e Mediação de Conflitos”, criada para elaborar estudos e buscar soluções para o transporte coletivo urbano do município, a Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) deve encaminhar para a Câmara Municipal nos próximos dias uma proposta para iniciar a reestruturação do sistema. Entre as medidas a serem submetidas à apreciação dos vereadores está a criação de um fundo para subsidiar ao menos as gratuidades, que hoje representam cerca de 15% dos passageiros.

A iniciativa acena para a subsidiação direta pelo orçamento público, tratando o aporte no transporte não como gasto, mas investimento em desenvolvimento e sustentabilidade. Nesse sentido, a proposta do município apresentada às empresas é de aporte direto de recursos de R$ 1,4 milhão por mês, totalizando R$ 9,8 milhões até dezembro.

Desaglomerar o sistema é o maior desafio (Foto: Leonardo Costa)

Com a redução proposta de 5% para 0% do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) nos próximos sete meses, calcula-se mais R$ 8,2 milhões. Por fim, com o projeto do Governo de Minas de isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) sobre o diesel, são calculados mais R$ 6,8 milhões até o fim do ano

No fim das contas, a Prefeitura trabalha com a disponibilização total de R$ 24,9 milhões para o sistema de transporte público coletivo em 2021. Em contrapartida, a passagem permanece no patamar de R$ 3,75. Além desses recursos, é preciso registrar que o município é o maior cliente de vale-transporte das empresas. No período anterior à pandemia, as despesas mensais eram de aproximadamente R$ 1,5 milhão.

Em conversa com os vereadores de Juiz de Fora sobre mobilidade urbana sustentável na nova realidade, na última semana de maio, o professor e mestre em transporte José Ricardo Daibert sugeriu a aplicação do subsídio como forma de o usuário pagar apenas pelo seu deslocamento. Pela forma de remuneração vigente, quem paga passagem acaba arcando também com benefícios sociais. A ideia é que toda a sociedade custeie essas gratuidades.

Em nota técnica publicada este ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada — “Novo modelo de contrato de mobilidade urbana: como gerar receita, aumentar uso e reduzir custos de transporte público urbano” —, os pesquisadores Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho, Breno Zaban e Fabiano Pompermayer tratam dos contratos do setor pela lógica de cobertura dos custos. “Nesse modelo, a tarifa é definida em um patamar que pague todas as despesas do serviço e ainda remunere adequadamente o prestador do serviço.”

Dessa forma, dado que o usuário do transporte público é, em sua grande maioria, a população que possui menor renda, tal modelo contribui para a desigualdade e mina até mesmo a possibilidade do uso do transporte público. “O aumento de tarifa praticado para reequilibrar finanças do contrato é, em geral, seguido por uma queda de demanda por fuga de usuários para outros meios de transporte”, explicam os pesquisadores. Como não bastasse, segundo o Ipea, esse modelo, na prática, passou a gerar aumentos constantes de tarifa e um desestímulo à redução de despesas.

A lógica é bem simples. Se o prestador de serviço mantém seu percentual de retorno mesmo se a tarifa aumentar, ele não tem motivo para trabalhar por despesas menores e preços acessíveis. Muito pelo contrário. Se o retorno for estabelecido como um percentual da base de custo, aumentar o dispêndio operacional acaba sendo um bom negócio. Sem incentivo, não há nenhum motivo racional que justifique o empresário buscar evitar despesas por equipamentos mais eficientes ou melhor gestão de mão de obra.

A nota técnica do Ipea traz ainda outro aspecto envolvendo o modelo de remuneração assegurada sobre custos que, em se tratando de Juiz de Fora, deve ser transcrito na íntegra.

“Esse sistema também gera um efeito indesejado do ponto de vista republicano. Se a única forma de aumentar seus ganhos é por meio de alteração da tarifa definida por autoridades públicas, a atenção do empresário será voltada para o governo, e não para os passageiros. Em vez de buscar melhorar o serviço para agradar passageiros, o foco do prestador será agradar políticos que decidem os termos e preços do serviço. E, no passado, esse incentivo a agradar políticos frequentemente resultou em condutas não republicanas por parte de prestadores e autoridades”.

Pensando em eliminar esse modelo, o estudo do Ipea cita algumas alternativas de financiamento público adotadas em municípios brasileiros, como o caso de Belo Horizonte, Goiânia, Brasília e Uberlândia, que começaram a aplicar “reajustes por índices paramétricos refletindo a inflação do transporte, com resultados positivos sobre a produtividade dos sistemas”. Ainda assim, embora recomende esse requisito no desenho do contrato prévio à licitação, os pesquisadores alegam que ele não se mostra adequado como critério de reajuste e reequilíbrio dos contratos.

A proposta do município é mexer na forma de financiamento das obrigações de atendimento a grupos vulneráveis, caso das gratuidades para idosos, doadores de sangue, dentro outros, que somam 15% do usuários na cidade. Hoje, quem arca com esses benefícios são os passageiros pagantes. Como tendem a possuir menor renda, isso torna a prática uma espécie de “tributo” regressivo disfarçado. O Ipea recomenda que os governos devam se abster de impor tais custos sobre os usuários. “Se a política é meritória, deve ser paga com receita tributária geral”.

Além da adoção de subsídio, a retirada dos cobradores, como acontece em outras cidades, esteve em pauta a pedido das empresas, mas não avançou. A medida representaria uma substancial redução de custo do sistema, uma vez que a maior despesa do setor é com folha de pessoal. A proposta, considerada de elevado custo político, enfrenta ainda problemas técnicos e legais em Juiz de Fora.

Pensar o sistema sem cobradores implica o uso de bilhetagem eletrônica como alternativa predominante, o que está bem longe de acontecer. Praticamente 50% dos usuários ainda pagam a passagem com dinheiro em espécie. Ou seja, caso o motorista tivesse que fazer a função do cobrador, dificilmente os ônibus conseguiriam sair dos pontos. Ampliar a bilhetagem eletrônica, entre outras coisas, envolve a disponibilização ampla de pontos de vendas de cartões, além de outras comodidades para os usuários.

O segundo problema é de ordem legal. A Câmara Municipal aprovou um projeto de lei do então vereador Roberto Cupolillo — Betão (PT), hoje deputado estadual, que veda a possibilidade de dupla função no transporte público coletivo. Pelo texto, sancionado na forma da Lei 13.838, de fevereiro de 2019, “as empresas manterão em cada veículo um profissional qualificado para exercer as funções de cobrança de passagem, controle de bilhetagem eletrônica e liberação de catraca”.

Tornar o serviço mais acessível em relação à tarifa e de melhor qualidade vai ao encontro da Emenda Constitucional 90, que inseriu o transporte público como direito social dos brasileiros. Os direitos ali definidos, como os de educação, saúde e moradia, são aqueles que todos deveriam, em tese, poder usufruir, de modo a ter um mínimo de qualidade de vida. “A inclusão do transporte coletivo nesse rol procede da inequívoca razão de ele constituir um serviço imprescindível para garantir o acesso a outros direitos”, como ensina o economista e especialista em transporte público, Ricardo Brinco.