A vida dos outros

Foi assim que Juiz de Fora ‘resolveu’ o problema da Vila da Prata

Por conta do agravamento da pandemia no município, o Parque da Lajinha está fechado. Ninguém passeia por lá. Do lado de fora, é possível ver os dois bondes da Companhia Ferrocarril. Eles guardam em silêncio parte do passado de Juiz de Fora. Também ali, na antiga fazenda dos Lajes, na quietude do lago, se esconde outra parte da história da cidade. Talvez uma das partes mais tristes.

A trágica manhã do dia 22 de dezembro de 1981 ficou marcada para sempre na memória da aposentada Carlinda Maria Vidal Gerheim, 60 anos, e de dezenas de pessoas que moravam na antiga ‘favela’ Vila da Prata, situada entre os bairros Teixeiras e Aeroporto, onde hoje é o Parque da Lajinha.

O relógio marcava sete e meia da manhã quando vários caminhões, tratores e servidores da Prefeitura de Juiz de Fora chegavam até a Vila da Prata, acompanhados por duas dezenas de policiais. A resistência foi grande, mas não o suficiente para sensibilizar os responsáveis. A ordem era colocar tudo a baixo. E dessa forma foi feito, sem ao menos dar tempo para os moradores protegerem e retirarem seus pertences de forma adequada. Às oito horas da manhã, caíam os primeiros barracos.

“Me lembro do desespero daquela manhã. Os caminhões entraram derrubando tudo. Eu só via as paredes das casas caindo e tudo sendo destruído”

“Me lembro do desespero daquela manhã. Os caminhões entraram derrubando tudo. Eu só via as paredes das casas caindo e tudo sendo destruído. Foi uma mistura de sentimentos: tristeza, angústia, desespero, impotência. Via as crianças chorando, mulheres grávidas em desespero e idosos desmaiando. E não podíamos fazer nada. Nunca imaginamos que aquilo poderia acontecer”, relembra emocionada.

Parte dos moradores havia sido retirada do local no ano de 1979 e transferida para o bairro Santa Efigênia. A remoção tinha como objetivo a construção do acesso de ligação das cidades de Juiz de Fora e Rio de Janeiro, situada no entorno do parque que seria construído. Os demais moradores resistiram às pressões e ainda permaneceram no local até o ano de 1981, quando medidas mais intensas foram tomadas, resultando na expulsão dramática de todos os moradores da Vila. No local, havia cerca de cem famílias que foram removidas para o bairro Santo Antônio em loteamentos sem a mínima infraestrutura.

“As famílias foram obrigadas a irem para o ‘pombal’ que foi oferecido pra elas no bairro Santo Antônio: uma casa de dois cômodos, medindo seis metros por três, sem redes de água e esgoto, sem luz, sem banheiro e sem assoalho”.

A remoção das famílias da Vila da Prata teve início às 7h30 do dia 22 de dezembro de 1981 (Foto: Arquivo pessoal Humberto Nicoline/Tribuna de Minas)

Mas dona Carlinda, que na época tinha 20 anos, permaneceu na Vila com os seus dois filhos, frutos do seu primeiro casamento, e com o seu atual marido, o senhor José Inácio Duque, e os nove filhos que moravam com ele. “Tínhamos 11 crianças em casa naquela época. Era impossível morarmos em uma casa com dois cômodos e sem nenhuma infraestrutura. E o meu marido, que era um homem muito bom, simples, da roça, produzia tijolos em uma olaria dentro da Vila. Era dali que tirávamos o sustento de toda a família. Meu único pensamento naquele dia era como eu ia alimentar meus dois filhos e os nove do meu marido. Então permanecemos lá por mais uns dois meses para tomar conta dos tijolos e tentar vendê-los para dar de comer para as nossas crianças. Depois alugamos uma casa pequena em Santa Efigênia e fomos morar todos juntos. Residimos, também, no bairro Sagrado Coração, em uma casa cedida pelo doutor Alber Ganimi. Logo após esse período, mudamos para outros lugares para trabalhar com plantação. Só mais tarde conseguimos construir uma casinha em Santa Efigênia, quando meu marido veio a falecer”, relembra.

Além da olaria – que era legalizada – segundo dona Carlinda, o sustento da família também era complementado com o que eles produziam dentro da Vila da Prata. “Tínhamos uma horta linda, pés de café, galinhas, porcos. E sabe aquela sensação horrível de ver tudo destruído em questões de segundos? Não sobrou nada. Só os tijolos e muita dor. Naquela noite tivemos que improvisar um lugar para dormir, eu, meu marido e as 11 crianças. Pegamos os entulhos que sobraram e assim dormimos. Lembro que choveu muito nos dias posteriores e nosso sentimento de medo e abandono só aumentavam”.

Remoção em massa das pessoas mais pobres

A remoção das famílias da ‘favela’ Vila da Prata para o Bairro Santo Antônio, na véspera de Natal, causou muitas críticas ao então prefeito Mello Reis. Um episódio que parece que as classes dominantes e setores da Prefeitura da época preferiram manter esquecido e apagado.

Informações contidas nos arquivos digitais do Repositório Institucional Digital da Produção Científica e Intelectual da UFJF datam que o período de desconstrução das favelas e da consequente expulsão dos pobres urbanos em Juiz de Fora aconteceu com mais frequência na administração do prefeito Mello Reis, entre 1977-1982.

Segundo relatos da tese de mestrado de Christiane Silva de Abreu, da Faculdade de Serviço Social, intitulada Favela e Remoção em Juiz de Fora – um estudo sobre a Vila da Prata, “para promover a renovação urbana, o prefeito realizou uma verdadeira operação de guerra contra os pobres, expulsando-os de toda área que fosse passível de valorização. No final da década de 1970 e início da 1980, Juiz de Fora efetivou um número expressivo de remoção em massa das pessoas mais pobres. Providenciar a limpeza da cidade, exterminando as favelas do cenário urbano, através da expulsão dos moradores, era um dos objetivos da Prefeitura de Juiz de Fora na época”.

A tese relata que “isolar os pobres seria a solução para esconder as favelas. As remoções faziam parte da Operação-gente, uma operação com pretensões de tornar a cidade mais humana. Remover para humanizar. Esse foi o procedimento padrão que definiu os rumos do planejamento urbano de Juiz de Fora durante a administração Mello Reis. Em alguns casos, antes das famílias serem transferidas para uma nova ocupação ou para um loteamento vago, eram transferidos para lugares deploráveis”.

Uma história de superação

Apesar de tanto ‘apanhar’ da vida, ao conversar com dona Carlinda você sente a força e a espiritualidade dessa mulher que superou não só esse trágico e desumano episódio de desocupação da Vila da Prata, mas, também, passou por momentos difíceis, como ela mesma relata.

“Me casei muito nova. E a relação com o meu primeiro marido, com quem tive dois filhos, era abusiva e violenta. Trabalhava desde pequena e, por dois anos, fiquei praticamente em cárcere privado no Rio de Janeiro onde trabalhei para uma família. Já fui expulsa da casa de outra senhora porque comi um resto de comida do almoço e a patroa ficou brava e me mandou embora”, relembra.

Minha força vem de Deus, na força de sobrevivência pelos filhos. Se a gente não sobrevive por eles, quem vai defendê-los, alimentá-los, educá-los.

Hoje – mãe de sete filhos – quando passa em frente ao Parque da Lajinha, um filme de terror vem à cabeça dessa mineira com sobrenome alemão. O sentimento que ainda tem é de revolta. Contudo, ela se diz uma pessoa feliz por ter conseguido – aos trancos e barrancos – sustentar os seus sete filhos praticamente sozinha.

“Minha força vem de Deus, na força de sobrevivência pelos filhos. Se a gente não sobrevive por eles, quem vai defendê-los, alimentá-los, educá-los. Eu não podia fraquejar. E hoje me sinto uma pessoa feliz. Tenho uma casa para morar, o amor dos meus filhos, não me falta comida, não me falta roupas pra vestir”, afirma dona Carlinda, que nos dá uma lição de vida nesses tempos de pandemia, quando muitos ainda não conseguem ter empatia pela dor do outro.

Além de muita força e coragem, dona Carlinda tem muita fé que ainda vai realizar um último sonho – ou um deles – que é tirar um dos filhos do vício das drogas. “Não vou descansar enquanto não conseguir uma clínica para o meu filho se recuperar. Ele é um menino muito bom, feliz, que não faz mal pra ninguém, só pra ele mesmo. Mas tenho certeza que Deus vai me dar mais esta graça”, afirma esperançosa.