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Eparrei Iansã

Iansã, do artista plástico baiano Ed Ribeiro (1949).

A urgência de reconhecer as diferentes formas de conhecimento é assunto recorrente em minhas aulas. Vez ou outra, não importa qual tenha sido o tema inicial do planejamento do dia, me pego reforçando com os alunos o quanto um título acadêmico não consegue reunir em si todas as multiplicidades de saberes.

Que a ciência é fundamental não há que se discutir. Longe de mim ser confundida com o grupo que desvaloriza o conhecimento produzido nas salas de aula mundo afora, que nos permite encurtar caminhos, aliviar dores e usufruir da generosidade de pensadores que contribuem para tornar nossa vida rica. Sempre me emociona o fato de que alguém que tenha utilizado grande parte da sua vida para aprender, ler, estudar e refletir se disponha a dialogar, ouvir, responder e pensar junto com quem ainda pensa em como iniciar o processo. A generosidade acadêmica, embora, por vezes, seja rara e substituída por uma arrogância que ignora o valor do conhecimento extramuros acadêmicos, quando se faz presente, é encantadora.

E é exatamente esse o sentimento que não abro mão de incentivar entre os meus alunos: estudem muito, aprendam sobre a cultura, as teorias da comunicação, o trabalho dos antropólogos, a importância do exercício do olhar sociológico… Estudem muito para aceitar que ainda há muito por saber. Para entender que nas casas antigas, com pequenos jardins repletos de ervas para chás e banhos, onde vivem as benzedeiras, reside um saber que desconhecem. Para que não sintam incômodo algum em reconhecer que os griots do nosso tempo seguem sendo os MC´s (Mestres de Cerimônia) das posses de hip hop das periferias país afora, e não o especialista entrevistado para legitimar o fenômeno das culturas de rua. Que no som dos tambores do congado pulsa uma história que, quando muito, só ouvimos falar.

Recorro aqui à analogia feita pelo físico, astrônomo e pesquisador brasileiro Marcelo Gleiser em seu livro “A ilha do conhecimento: os limites da ciência e a busca por sentido”. Ele nos convida a imaginar o conhecimento científico como uma ilha, rodeada pelo oceano do desconhecimento.  Desta forma, quanto maior se torna nosso campo de conhecimento (a ilha), cresce também o perímetro desse nosso refúgio. E, com ele, aumenta nossa fronteira com o desconhecido.

Portanto, o conhecimento deveria nos levar não ao isolamento dos gabinetes nos quais vivem tantos pesquisadores acreditando ter encontrado todas as respostas, e não reconhecendo como interlocutores válidos quem não fez o mesmo caminho. Deveria levar ao lugar do jovem aprendiz, que carrega o brilho nos olhos ao descobrir que sempre há mais por conhecer.

O conhecimento deveria nos levar não ao isolamento dos gabinetes nos quais vivem tantos pesquisadores acreditando ter encontrado todas as respostas

Para que não reste dúvida, compartilho uma história que essa semana tive a chance de relembrar durante uma aula de Comunicação Comunitária com uma turma especialmente intrigante. Há alguns anos, quando ainda trabalhava em uma emissora de rádio local, recebemos um Babalorixá responsável pelas previsões para o ano seguinte. Encerrada a entrevista, ele foi logo cercado pela equipe de trabalho, que pediu que “jogasse os búzios” e fizesse algumas previsões individuais. Do que ele me falou, me lembro pouco. A única frase que não me saiu da cabeça é que eu era uma típica filha de Iansã. Não entendi. Mas, muitos dos presentes exclamaram: claro!! Estavam se referindo a referências que eu não conhecia.  Meses depois, ao viajar para Salvador, recebi uma encomenda de uma amiga do trabalho: compre para mim Contas de Xangô!

Antes de embarcar de volta, passei pelo mercado central e vi um senhor de cabeça branca sentado na entrada de uma pequena loja repleta de Fios de Contas. Dei um único passo para dentro da loja e perguntei: “Boa tarde, o senhor tem contas de Xangô?”. Ele me olhou desconfiado e perguntou: “Por que Xangô, se você é filha de Iansã?” Levei um susto, e a fala do Babalorixá veio imediatamente à minha mente. O que eles enxergavam que eu não via? Que eu não sabia nem onde procurar? Minha ignorância me tomou de sobressalto.

Voltei para casa e fiquei soterrada por tantas obrigações que acreditei que era um assunto passado. Pouco tempo depois, ao lecionar Jornalismo e Religião para os graduandos em Jornalismo da UFJF, recebemos a visita de um representante local das religiões de matriz africana, Pai Jaques, a quem admiro muito por sua generosidade em compartilhar seu conhecimento. No momento das perguntas, aproveitei para satisfazer uma curiosidade pessoal: “Pai Jaques, como é possível saber quem é filho de cada orixá?”.

Ele nem precisou pensar para responder. Como aconteceu na primeira vez, não me recordo de toda a resposta, apenas da primeira frase: “Em alguns casos, como no seu, que é fácil ver que é filha de Iansã, nem precisa muita coisa”.

Definitivamente o meu título de Doutora não me abriu todas as portas do conhecimento. Esses três homens, em diferentes momentos da minha vida, seguem me ensinando, a cada vez que relembro e compartilho essa história, que existe uma forte rede de conhecimento, de símbolos, de histórias e de sentidos que desconheço. E que o fato de sua resistência residir na oralidade, nos terreiros, na cor da pele daqueles que ainda são minoria nos quadros de pesquisadores doutores, não faz dele um conhecimento menor, menos legítimo e menos urgente. Você já me conhece, Iansã, e prometo seguir aprendendo para também te conhecer.