Sim, isso acontece com mais frequência do que se imagina. O que não significa se tratar de um problema ou mesmo de um erro do sistema eleitoral. A eleitora ou a eleitor que foi às urnas em 2020, votou em um candidato ou em uma candidata a vereador e descobriu depois que, embora tenha obtido um número expressivo de votos, seu escolhido ou sua escolhida não venceu. Pior: alguém com bem menos acabou eleito.
Isso acontece porque o sistema eleitoral brasileiro adota o modelo proporcional para escolha de vereadores e deputados. Como funciona? O eleitor pode votar em um candidato ou em uma sigla. Mas todos os votos são computados para os partidos, que são de fato os vencedores ou perdedores do processo. Quanto mais votos uma legenda partidária tiver, mais vereadores ou deputados ela vai ter.
Aí, sim, os candidatos mais votados dentro de cada partido vão ocupando as vagas. Só há um porém nessa história, que não deixa de ser justo. Mesmo se a legenda partidária conquistar expressiva votação, mas nenhum dos seus candidatos obter desempenho individual de 10% do quociente eleitoral, ela não vai eleger ninguém. Por quociente eleitoral entenda-se o número total de votos válidos da eleição divido pelo número de vagas no Parlamento em disputa.
Em Juiz de Fora, há dois casos que já estão se tornando clássicos. Os candidatos Negro Bússola (Rede) e João do Joaninho (Patriota) nas duas últimas eleições figuraram entre os mais bem votados nas eleições, mas acabaram ficando de fora. O desempenho de ambos superou e muito os 10% do quociente eleitoral, mas seus partidos ficaram devendo votos. No caso de Negro Bússola, aliás, faltou bem pouco para se eleger.
Os votos dados aos candidatos da Rede, entre eles os 5.085 de Negro Bússola, e à legenda somaram 8.573 votos. O PSD, que elegeu o vereador Nilton Militão, obteve com os nomes lançados para a disputa e com legenda 8.640 votos. Ou seja, com mais 68 votos, a Rede ficaria com a vaga, que seria ocupada pelo seu candidato com mais votos, no caso, Negro Bússola.
O sistema proporcional, segundo cientistas políticos, é capaz de refletir os diversos pensamentos e tendências existentes na sociedade, já que possibilita a eleição da maioria dos partidos políticos existentes, observadas as suas representatividades. Também há um alto aproveitamento dos votos, pelo fato de a votação dada ao partido interferir na quantidade de cadeiras conquistadas.
“Todos os votos recebidos pelos partidos são somados para o cálculo de quantas vezes o partido alcançou o quociente eleitoral. Isso quer dizer que, na transformação dos votos em cadeiras, os partidos têm um papel central”, explica a cientista política e professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Marta Mendes da Rocha. Essa fórmula ainda, segundo ela, “permite a representação de minorias e o máximo aproveitamento dos votos”.
Aposta no ‘distritão’ é meter os pés pelas mãos
Em meio à pandemia e à CPI da Covid-19, a Câmara dos Deputados se debruça sobre outra pauta, pouco relacionada aos acontecimentos atuais, mas que, volta e meia, vem à tona, principalmente em anos que antecedem as eleições. Trata-se de uma série de propostas que podem compor uma nova reforma política.
A conversa começou despretensiosamente em torno de uma simples Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para tratar do adiamento das eleições quando houver feriado próximo a elas. O deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), autor da proposta, assegura que queria apenas evitar o questionamento da legitimidade dos resultados por causa da evasão de eleitores que viajam em feriados prolongados.
De uma singela mudança de datas para algo que pode mudar todo o sistema eleitoral brasileiro foi um pulo. Em maio, a deputada Renata Abreu (Podemos-SP) foi indicada relatora da comissão especial criada um mês antes pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), para debater a PEC 125/11.
Com o argumento genérico de que a população não anda satisfeita com o sistema eleitoral atual, a relatora devolveu para a Câmara dos Deputados o tal distritão, que, grosso modo, seria a eleição dos mais votados, independentemente do sucesso partidário. O modelo é adotado em apenas quatro países ao redor do mundo: Afeganistão, Kuait, Emirados Árabes Unidos e Vanatu.
Sua adoção representaria uma mudança muito considerável em relação ao sistema vigente. Um dos problemas visto nesse sistema, que tem a seu favor a fácil compreensão por grande parte do eleitorado, uma vez que elege quem tem mais votos, é o da representatividade e participação dos partidos nas eleições.
Segundo o cientista político da UFJF Raul Magalhães, o distritão favorece os candidatos com mais recursos a serem investidos nas campanhas eleitorais, além de acabar com a proporcionalidade. “Se um partido hoje tem 20% dos votos ele tem 20% da representação, isso tudo acaba.”
Outro componente que pode ganhar destaque com o distritão é a personalização dos candidatos. Enquanto, por um lado, enfraquece os partidos ao personalizar as campanhas, por outro, pelo mesmo motivo, tende a favorecer grupos endinheirados e celebridades. “É provável que estimule o gerrymandering, que é a manipulação dos limites dos distritos eleitorais para fortalecer certos grupos”, alerta Marta Mendes da Rocha
Convidado a debater a questão pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o cientista político Jairo Nicolau aponta que o modelo aparece como novidade, mas é um dos sistemas eleitorais mais antigos do mundo. Ele revela que o Brasil já elegeu deputados ao longo do Império e da Primeira República com variantes desse modelo.
Para o pesquisador, a perspectiva não é das melhores do ponto de vista partidário. “O distritão estimula o hiperindividualismo político, o que é péssimo. O deputado passa a ter grande autonomia, pode negociar apoio direto com o presidente, com suas bases, sua igreja. Tudo isso sem depender de partidos, de colegas.”
“A adoção do distritão aprofunda esses déficits (de representação) e não traz nenhum ganho em termos de representatividade.”
Para Marta Mendes, o distritão “apresenta riscos para a democracia na medida em que amplia ainda mais os atuais déficits de representação”. A professora concorda quanto à necessidade de aperfeiçoamento, mas “para tornar o sistema mais representativo, para reduzir a sub-representação de mulheres, negros, indígenas e trabalhadores”. A novidade que tramita na Câmara dos Deputados vai na direção contrária. “A adoção do distritão aprofunda esses déficits e não traz nenhum ganho em termos de representatividade.”
Na última semana, líderes partidários se reuniram com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para convencê-lo a adiar a votação da proposta. O grupo conseguiu o compromisso de o texto entrar na pauta somente em agosto, que seria o limite para a aprovação. Isso porque o calendário para uma eventual medida dessas valer para a eleição de 2022 é curto, principalmente, em tempos de CPI da Covid-19.
Após aprovada em dois turnos pela Câmara, a proposta ainda precisa ser aprovada em duas votações pelos senadores e, caso ocorram alterações, votada novamente pelos deputados até 3 de outubro para ter validade na eleição de 2022. Tudo com quórum qualificado de 3/5 dos votos.
Veja o que mudaria se o ‘distritão’ estivesse valendo desde 2018
Com a proposta que pode por fim à proporcionalidade, os poucos mais de 230 mil votos acumulados pelo deputado Marcelo Álvaro Antônio (eleito pelo PSL) – deputado federal mais votado em Minas Gerais nas eleições de 2018 – teria o mesmo peso dos 32.833 votos que ajudaram a eleger o deputado Zé Victor (eleito pelo PMN).
Das 53 cadeiras na Câmara dos Deputados reservadas aos mineiros, sete sofreriam mudanças. Com as trocas, a bancada de Juiz de Fora teria a substituição de Charlles Evangelista (PSL) por Marcus Pestana (PSDB). As mudanças também mexeriam na representação partidária dos mineiros na Casa.
Entre as bancadas de posse, o partido mais prejudicado seria o Avante, que perderia 66% dos representantes eleitos com o novo modelo, seguido pelo PSL, que perderia 50% da representação. Por outro lado, o PSDB, que elegeu cinco parlamentares, ganharia mais dois nomes e passaria a ter a segunda maior representação da casa, atrás apenas do PT, com oito parlamentares.
O PPS, que não elegeu nenhum representante, ganharia uma vaga caso o distritão estivesse valendo em 2018. Já o PMN, que elegeu um deputado, perderia seu o representante.
O efeito maior do distritão, caso já estivesse em vigor, seria na composição da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Dos atuais 77 deputados eleitos, 16 seriam substituídos, contribuindo para o desaparecimento de bancadas, como o caso do partido Novo.
Se tratando da representação juiz-forana, dois candidatos locais voltariam para a Assembleia, caso de Isauro Calais (MDB) e Antônio Jorge (PPS). Luiz Fernando Faria (PP), de Santos Dumont, também ganharia novo mandato.
A composição partidária da ALMG, consequentemente, seria impactada fortemente pela mudança. Os mais de 114 mil votos cooptados pelo deputado Noraldino Júnior (PSC) seriam incapazes de evitar a perda dos outros dois nomes eleitos pelo partido num eventual cenário com o distritão. Enquanto isso, o MDB passaria de sete eleitos para doze, assumindo a maior de bancada da casa.
Partidos como o Novo, além de DC, PRP, PRTB, PSOL, Rede e Solidariedade perderiam toda a representação no Legislativo mineiro.
Já a Câmara Municipal de Juiz de Fora sofreria pequenas alterações em seu quadro. Dos 19 vereadores eleitos, três parlamentares não se elegeriam num eventual adoção do distritão: Kátia Franco Protetora (PSC), Vagner de Oliveira (PSB) e Nilton Militão (PSD). Com a soma dos votos adquiridos nas eleições do ano passado, ocupariam as vagas Negro Bússola (Rede), João do Joaninho (Patriota) e André Mariano (PSL).
Consequentemente, a composição partidária no Palácio Barbosa Lima também passaria por eventuais alterações. O PSD perderia seu representante, enquanto que PSC e PSB veriam suas representações caírem pela metade. Já o Patriotas e o PSL ganhariam mais uma cadeira cada. A Rede, por sua vez, estrearia na Casa com um representante.