Conjuntura

O home office veio para ficar?

Dados do Ipea mostram que 22,7% das atividades no Brasil poderiam ser realizados inteiramente em casa (Foto: Bonnie Kittle/Unsplash)

Quando a pandemia chegou ao Brasil, no ano passado, com a confirmação dos primeiros casos de Covid-19, milhões de brasileiros foram levados a trabalhar de casa, como medida protetiva contra a transmissão do coronavírus. O home office acabou se tornando realidade entre os trabalhadores, mesmo que de maneira improvisada, com pontos positivos e negativos.

Em Juiz de Fora, empresas das áreas de comunicação e tecnologia já consideram o retorno ao trabalho presencial apenas como uma possibilidade em casos específicos. Também no setor público, além do Governo federal, que prepara implantação definitiva do trabalho remoto em muitas áreas, a Prefeitura de Juiz de Fora também não descarta sua adoção para algumas atividades.

Entretanto, após mais de um ano de pandemia, legislações específicas e regulamentadoras desse modelo de atividade ainda fazem falta no país, especialmente porque, agora, o trabalho remoto pode se tornar cada vez mais comum em diversos setores econômicos.

De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgados em julho deste ano, 8,2 milhões de brasileiros – equivalente a 11% das 74 milhões de pessoas ocupadas e não afastadas no país – exerceram suas atividades de trabalho de maneira remota durante em algum momento durante a pandemia da Covid-19 em 2020. Para o levantamento, o Ipea levou em conta informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Covid-19, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos meses de maio a novembro.

O potencial de trabalho remoto no país é, entretanto, ainda maior, conforme outro estudo também realizado pelo Ipea. Cerca de 22,7% dos atividades no Brasil poderiam ser realizados inteiramente em casa, o que corresponde a 20,8 milhões de pessoas. Um estudo americano, cuja metodologia serviu como base para a investigação brasileira, mostra que o país ocupa a 45ª posição de 86 países analisados, com um percentual de 25,7% de teletrabalho. Na América Latina, o Brasil fica em terceiro lugar, atrás apenas do Uruguai (27,28%) e Chile (25,74%).

Conforme o levantamento do Ipea, a viabilidade do home office varia entre os estados e as ocupações laborais. O Distrito Federal apresenta o maior percentual de teletrabalho (31,6%). Já Minas Gerais ocupa a 12ª posição entre os estados, com 20,4% de potencial, o que significaria mais de 2 milhões de pessoas trabalhando remotamente.

Tendência antes da pandemia

Segundo o especialista em Planejamento de Comunicação e sócio-fundador da HOM – empresa pioneira em ajudar organizações a implementarem o trabalho remoto no país -, Tawan Pimentel, o trabalho remoto já vinha ganhando adeptos no Brasil desde a Reforma Trabalhista de 2017. A implantação, entretanto, ainda vinha tímida e em caráter experimental, com áreas específicas de empresas e trabalhadores atuando em casa apenas uma vez por semana. “Era visto mais como um benefício do que como realmente um modelo de trabalho, com característica de adesão voluntária também – quem quisesse e fosse elegível, poderia começar a trabalhar dessa forma”, diz Pimentel. “Na pandemia, virou a chave e teve processos massificados, aí foi bem diferente.”

Tawan Pimentel: pandemia forçou o home office (Foto: arquivo pessoal)

Conforme o especialista, ainda havia um despreparo, não só no Brasil, mas em todo o mundo, quanto à implementação “forçada” do home office em virtude da pandemia, que acabou ocorrendo, em muitos casos, de maneira improvisada. Com isso, o modelo acabou não atingindo os benefícios idealizados pelo trabalho remoto, como melhor qualidade de vida, resultados e economia para as empresas.

“Tiveram empresas e áreas que estavam mais preparadas, que já tinham alguma afinidade e alguma experiência com o modelo, mas outras não estavam preparadas em questões de recursos e, principalmente, em questões culturais, de saber lidar com a gestão e autogestão de trabalhar em casa”, diz o sócio-fundador da HOM. “O trabalho invadiu nossa casa sem pedir licença e, em pouquíssimo tempo, a gente teve que mudar a forma de gerir pessoas, de atender clientes, de criar serviços e produtos, dar continuidade aos negócios. Tem também toda uma crise financeira atrelada a isso que dificulta todos esses investimentos”.

Ainda antes das restrições impostas pela pandemia, a agência De Minas Comunicação, de Juiz de Fora, já havia optado pelo trabalho remoto. Para isso, a empresa entrou em acordo com todos os funcionários sobre como o modelo ocorreria. “A decisão de migrar para o home office aconteceu em conjunto, entre todos da empresa. Somos uma agência ‘pequena’, em número de colaboradores, e até temos pessoas na equipe que não moram em Juiz de Fora. Com a pandemia e o cenário atual, se mostrou a decisão mais acertada”, conta a jornalista e coordenadora da De Minas Comunicação, Ruth Flores.

Ruth Flores: o home office não é problema; problema é não poder sair de casa (Foto: arquivo pessoal)

A jornalista, assim como os demais colaboradores da agência, teve a rotina modificada com o modelo, mas foi a pandemia da Covid-19 que acabou influenciando negativamente em alguns aspectos. “Como foi planejado, ao invés de uma ‘transição forçada’ como a maioria das outras empresas, sinto que me adaptei muito tranquilamente.” A liberdade proporcionada pelo home office, as vantagens de não perder tempo com deslocamentos, de fugir do stress do trânsito ajudaram no início.

O problema, segundo Ruth, veio mesmo com a pandemia. “O home office em si é perfeito para a minha rotina e meu formato de trabalho. O que está ‘pesando’ mesmo é a pandemia. Antes, quando eu podia sair livremente para me divertir, para ir ao cinema, passear, ver os amigos, eu podia me distrair do ‘escritório’. Ao perder isso, agora passo o tempo todo no trabalho”.

Além disso, ela relata que a pandemia acabou extinguindo certos limites estabelecidos quando a rotina de trabalho era normal. “O que incomoda mais são as outras pessoas que não respeitam o horário comercial. Com a pandemia teve muito disso, principalmente para quem lida com atendimento ao cliente. Acho que muitos pensam: ‘Ah, todo mundo tá em casa mesmo, por que você não pode resolver esse probleminha aqui às 20h?’”

Principais áreas que estiveram home office

Os estudos do Ipea mostram que, das pessoas que estiveram em home office durante 2020, 14,5% estavam em atividades de serviços no setor privado, 10,3% na área de educação privada e 7,7% trabalhando com comunicação. Os menores percentuais foram para as áreas de turismo (0,2%), agricultura (0,6%) e alimentação (0,8%).

Raquel Cataldi: saudade da sensação de sair do trabalho e ir para casa (Foto: arquivo pessoal)

A Analista de Comunicação do UniAcademia em Juiz de Fora, Raquel Cataldi, está entre os brasileiros que precisaram migrar para o trabalho remoto. Trabalhando com educação privada e comunicação, ela considerou “tranquila” a transição para o home office. “Eu havia trabalhado remotamente antes apenas um único dia na época da greve dos caminhoneiros. Tivemos que encontrar formas eficientes de comunicação a distância. Mas, pelo menos para mim, depois de uma semana,  já me sentia adaptada.”

A nova rotina contou com altos e baixos – estes últimos, por conta da pandemia -, mas, no final, a balança pendeu mais para os pontos positivos como, por exemplo, na economia com o deslocamento e melhor aproveitamento dos horários de intervalo do trabalho. “Também fiquei mais produtiva, porque passei a trabalhar de forma mais focada, com menos distrações, o que para mim foi uma surpresa, já que antes de ter a experiência do home office, eu achava que ficaria mais dispersa em casa”.

Por outro lado, segundo Raquel, a confusão de estar a um só tempo em casa e no escritório trouxe pontos negativos. “Muitas vezes me pego trabalhando fora do horário e com saudade daquela sensação de sair do trabalho, já que casa e escritório se tornaram a mesma coisa.”

Mateus Custódio: consigo render mais trabalhando em casa (Foto: arquivo pessoal)

O Tech Lead na empresa de tecnologia Delage, Mateus Custódio, também percebeu aspectos positivos com a nova realidade de trabalho remoto. “Agora consigo dedicar mais tempo para estudos e hobbies, além de dormir melhor.” Para ele, o desafio é aprender separar a vida pessoal da profissional quando as duas dividem o mesmo ambiente. “Com tempo e maturidade foi possível chegar num modelo saudável. Hoje vejo que consigo render mais trabalhando de casa e, quando tudo isso passar, espero conseguir aproveitar todas as vantagens do trabalho remoto.”

Mateus trabalhou na Delage antes da pandemia e retornou em junho de 2020, quando a empresa já havia passado pela transição do trabalho presencial para o remoto. De acordo com ele, a empresa busca oferecer equipamentos para os funcionários atuarem em home office, que vão desde computadores a fones de ouvido. “O que eu posso afirmar é que sempre buscamos dar as condições para que as pessoas trabalhem bem de casa, isso pode ser uma cadeira de qualidade, um bom segundo monitor e etc.”

Setor público

O setor público representa 36,1% dos trabalhadores exercendo atividades remotas, sendo 14,4% nas administrações públicas municipais, 13,9% empregadas pelos governos estaduais e 7,8% pelo Governo federal. Conforme o Ipea, 52,2% das pessoas empregadas pelo setor público e que estavam em trabalho remoto eram profissionais da educação.

Em Juiz de Fora, O Pharol tentou levantar informações sobre o percentual do funcionalismo municipal que está em home office atualmente. Em retorno à solicitação, a Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) informou que este acompanhamento é realizado de forma “descentralizada”, seguindo as portarias de cada unidade gestora de administração direta e indireta, que podem, por sua vez, adotar medidas específicas de prevenção em relação à pandemia da Covid-19, incluindo o trabalho remoto. Ainda conforme a administração municipal, esse acompanhamento segue o programa municipal Juiz de Fora Pela Vida.

Também questionada sobre a adoção do modelo remoto de forma definitiva, a PJF explicou que “o município tem realizado estudos visando a regulamentação do trabalho remoto na Administração, mapeando processos de trabalho que permitam tal modalidade, além de, eventualmente, avaliar como está se dando a implementação em outros entes”.

Legislação ainda possui brechas sobre trabalho remoto

A Reforma Trabalhista de 2017 foi o primeiro passo quanto à regulamentação do modelo remoto no país, quando trouxe disposições específicas sobre o teletrabalho na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Entretanto, deixou em aberto algumas questões relacionadas principalmente ao controle da jornada de trabalho, ao pagamento de horas extras ou adicional noturno e a promoção de um ambiente de trabalho saudável e produtivo, de acordo com a professora e coordenadora do Núcleo da Prática Jurídica (NPJ) do Centro Universitário Estácio Juiz de Fora, Fernanda Barcellos Mathiasi.

Segundo ela, as brechas legais sobre o teletrabalho “são exatamente a regulamentação de condições ‘mínimas’ para garantir o chamado ‘trabalho decente’, conceito que estabelece a Organização Internacional do Trabalho”. Além da jornada de trabalho, das horas excedentes como extra e do adicional noturno, a professora chama atenção para manutenção de “salários não menores que o mínimo, possibilidade de sindicalização, benefícios para carreira, férias, 13º, empresa fornecendo condições de saúde, higiene, ergonomia e estrutura técnica para realização de atividades cotidianas.”

Fernanda Mathiasi: é preciso regulamentar as condições ‘mínimas’ para garantir o chamado ‘trabalho decente’ (Foto: arquivo pessoal)

No ano passado, a Medida Provisória (MP) 927 autorizou a mudança do regime presencial para o trabalho a distância por conta da pandemia da Covid-19, mas não regulamentou as questões fundamentais para os trabalhadores. A norma já foi revogada e, conforme destacado por Fernanda, outros dados do Ipea mostram que, após três meses de pandemia, 300 mil pessoas haviam retornado ao trabalho presencial.

“A mudança que trouxe à CLT sobre o tema foi pequena, apenas autorizou que exista o trabalho remoto, mas não orientou o empregador sobre como este trabalho acontece na prática”, explica a especialista. “A questão do controle de jornada, por exemplo, é fundamental, pois caso haja trabalho exaustivo, pode gerar uma doença decorrente da sobrecarga de trabalho, impactando na saúde do trabalhador. Outra questão foi também a falta de estrutura nas casas de muitos trabalhadores para incorporar atividades laborais e que, em muitos casos não foi e não é proporcionada pela empresa, exatamente pela autorização dada pela MP 927.”

Conselhos profissionais autorizam atendimento on-line

Com a regulamentação a desejar, determinados conselhos federais autorizaram o exercício profissional e deram diretrizes sobre as atividades remotas, especialmente na área da saúde, como no caso da medicina, psicologia e nutrição. Para a coordenadora do NPJ do Centro Universitário Estácio Juiz de Fora, Fernanda Barcellos Mathiasi, tais autorizações contribuem para a qualidade do trabalho dos diferentes profissionais, mesmo não substituindo a regulamentação por meio da legislação.

 “Todas as profissões e conselhos ajudam muito informando e divulgando informações sobre o tema, inclusive para manter um contexto de trabalho decente, digno, a todas as categorias profissionais”. Isso não evitou, no entanto, os atropelos. “Não foi suficiente para evitar transgressões ao direito do trabalho ou mesmo a sensação de injustiça por parte de trabalhador”, explica Fernanda. Para ela, “a melhor conjuntura é propor a regulamentação dos temas ainda não tratados na CLT sobre o teletrabalho”.

O Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), por exemplo, autorizou o atendimento on-line em março do ano passado e fez algumas prorrogações, sendo a última delas válida até que a Organização Mundial da Saúde declare o fim da pandemia da Covid-19. Em setembro, instituiu, inclusive, um cadastro nacional dos profissionais para teleconsulta, trazendo normas e orientações para o atendimento.

Júlia Carneiro: transição para o remoto foi ainda mais desafiadora na área da saúde (Foto: arquivo pessoal)

Para a nutricionista Júlia Carneiro, de Juiz de Fora, a autorização dada pelo CFN contribui para os profissionais em dois aspectos. Primeiro por possibilitar a continuidade do atendimento quando o presencial não é viável. Depois por viabilizar a chegada de pacientes de outros lugares ou que necessitavam do serviço em horários alternativos.

“Trabalho em Juiz de Fora, mas atendo uma pessoa de Calambau. Eu não teria essa oportunidade se não fosse esse atendimento on-line. Acredito que essa autorização tenha ajudado a expandir o nosso campo e mostrar a nutrição como ela deve ser feita para muita gente, não só no formato tradicional e não só para a nossa região de atuação”, diz Júlia.

Assim como todas as profissões que, da noite para o dia, precisaram migrar para o modelo remoto, a nutricionista teve que realizar algumas adaptações no atendimento, contando com o auxílio de ferramentas digitais, como softwares para acompanhamento de dieta, plataformas de chamada de vídeo e, inclusive, o WhatsApp. “A transição do trabalho presencial para o remoto foi muito desafiadora, porque a área da saúde é uma área muito de contato entre profissional e o paciente. A gente precisa muito dessa troca.”

As medidas antropométricas passaram a ser feitas pelos próprios pacientes, ou com o auxílio de familiares. Para quem não possuía fita métrica, a nutricionista orientava que utilizassem um barbante, por exemplo. Além disso, o ambiente domiciliar nem sempre é propício para a realização do atendimento de determinados pacientes.

“Eu sinto que os pacientes que têm uma história de vida muito conturbada com a alimentação não aproveitam tanto a consulta on-line quanto outros pacientes, caso eles morem com outra pessoa. É muito difícil para um paciente, principalmente com um transtorno alimentar, falar sobre essa condição quando tem alguém por perto”, exemplifica Júlia.

Mesmo com estes aspectos desfavoráveis ao atendimento remoto, a nutricionista acredita que o mesmo deveria ser continuado após a pandemia da Covid-19, ponto defendido pela categoria. “A gente está tentando se mobilizar para realmente continuar com o atendimento on-line. O modelo pode ajudar a levar a nutrição aonde não se conseguia levar antes.”

Modelo híbrido pode ser o futuro

Mesmo com a cultura do trabalho presencial enraizada no Brasil, o modelo remoto imposto pela pandemia pode se tornar definitivo em determinadas áreas. Entretanto, a princípio, ele deve ocorrer em um modelo híbrido, variando entre dias presenciais e dias em home office, de acordo com Tawan Pimentel, sócio-fundador da HOM.

“O trabalho remoto já vai continuar, a diferença é que a grande maioria que está hoje em casa todos os dias deve voltar para o híbrido e, depois, a gente começa no movimento gradual de algumas áreas terem uma frequência maior de trabalhar remotamente. Empresas novas vão começar a surgir também com esse pensamento. Agora entra o fator tempo para as coisas melhorarem.”

Para Tawan, o futuro vai diferenciar o trabalho remoto da pandemia com o trabalho remoto pós-pandemia. “Sendo honesto, eu espero que o trabalho remoto fique e que as pessoas o conheçam de verdade, não o trabalho remoto de pandemia, que realmente é um trabalho muito difícil de ser feito e completamente diferente do que vai ser no futuro.”

Nesse contexto, ele considera a regulamentação como caráter fundamental para a continuidade do modelo, de forma que possa determinar as responsabilidades das empresas e os direitos dos trabalhadores, além de esclarecer os diferentes modelos de trabalho remoto.  “Hoje na legislação, basicamente a gente fala só de teletrabalho, que é preponderantemente trabalhar fora do escritório, ou seja, passar mais tempo fora do que dentro do escritório, e só tem regras relacionadas a isso. A gente tem várias outras possibilidades de trabalhar remoto.”

A pesquisa do Ipea sobre o potencial de trabalho remoto mostra que, entre as ocupações avaliadas, os profissionais das ciências e intelectuais, diretores e gerentes, bem como trabalhadores de apoio administrativo, apresentam as maiores médias de probabilidade de trabalho remoto, com 65%, 61% e 41%, respectivamente.

Na outra ponta, para integrantes das Forças Armadas, policiais e bombeiros militares, além de operadores de instalações, máquinas e montadores, e trabalhadores qualificados da agropecuária, florestais, da caça e da pesca, a probabilidade foi próxima de zero.