Meio Ambiente

Para mudar a forma de nascer em Juiz de Fora

A nutricionista Anelisa Rezende se preparou ao longo da gestação e teve parto normal há um mês. Mas apenas 22% dos atendimentos na rede privada foram deste tipo de parto no último ano (Foto: Marina Costa)

“Para mudar o mundo, é preciso, primeiro, mudar a forma de nascer.” Mas a frase do médico obstetra francês Michel Odent, que é repetida quase como um mantra nos movimentos pela humanização dos partos no país, ainda está distante de ser uma realidade por aqui. Segundo dados do Ministério da Saúde, fornecidos pela Secretaria de Saúde da Prefeitura de Juiz de Fora, em 2020, dos 7.859 nascidos em Juiz de Fora, 4.495 são de cesáreas e 3.363 de partos vaginais (comumente conhecido como parto normal). Isso significa que o índice de cesarianas realizadas no município foi de 57,19%, enquanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que esse percentual fique entre 10% e 15% dos partos. 

Mas o percentual não reflete apenas a opção das gestantes. Cerca de 70% das grávidas desejam um parto normal no início da gestação, só que poucas são apoiadas nessa decisão até o fim, conforme dados da pesquisa Nascer no Brasil, desenvolvida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com outras instituições brasileiras.

Esta é a primeira matéria de uma série em que traremos informações sobre o perfil dos partos em Juiz de Fora, a violência obstétrica e o gerar e o nascer em tempos pandêmicos. E a escolha do mês não é aleatória. Em 14 de dezembro completaram-se 20 anos desde a criação da Casa de Parto na Universidade Federal de Juiz de Fora, um dos primeiros instrumentos da humanização de partos no município, mas que foi fechada em 2008. Foi também neste mês, no último dia 5, que se completaram cinco anos desde a aprovação da Lei de Doulas no município. Mas também é em dezembro, principalmente nesta semana, que ocorre o maior volume de partos cesáreos no ano, em um evento conhecido como “cesárea de Natal”. 

Na semana passada, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) lançou uma nova campanha de prevenção ao agendamento de cesarianas desnecessárias. A proposta é chamar a atenção para os riscos à saúde de gestantes e bebês quando as cesáreas são agendadas sem indicação clínica. Em 2020, apenas na saúde suplementar, dos 484.010 partos realizados, 400.243, ou 80%, foram por cirurgias cesáreas.

“Ao analisarmos os dados históricos do setor, identificamos todos os anos um incremento sazonal das cesarianas durante festas, feriados e férias, sobretudo entre dezembro e fevereiro. Possivelmente este fato está relacionado às questões de conciliação de agendas, conveniência ou o receio da ausência de profissionais disponíveis nesses períodos”, aponta a gerente-substituta de Estímulo à Inovação e Avaliação da Qualidade Setorial da ANS, Rosana Neves. Segundo o Painel de Indicadores de Atenção Materna e Neonatal, no ano de 2019, nos hospitais privados (não necessariamente vinculados aos planos de saúde), o maior percentual de realização de cirurgias cesáreas ocorreu entre 37 e 38 semanas (37,29%). 

Segundo a ANS, cirurgias cesáreas agendadas, sem aguardar o momento em que o bebê está pronto para nascer, acabam acarretando mais riscos à saúde e mais custos ao sistema.

Índice de cesáreas em Juiz de Fora está acima do nacional

Em 2019, as taxas de cesáreas em Juiz de Fora ficaram em 56,4%, índice acima do registrado no país, que foi de 55,5%. O Brasil é o segundo país que mais realiza este tipo de cirurgia no mundo, atrás apenas da República Dominicana. Procurado por O Pharol, o Ministério da Saúde não informou os índices nacionais de cesarianas referentes a 2020, apenas os números absolutos: 1,56 milhão.

Vários fatores, tanto culturais como econômicos, aparecem nesse cenário de elevado número de cesáreas não só no município, mas no estado e em todo o país. Uma forte cultura centrada no médico faz com que o nascer (um ato natural e fisiológico) seja encarado como um evento clínico e hospitalar, cercado de intervenções e medicalizações, na maioria das vezes desnecessárias. 

Se levados em consideração apenas os registros na rede privada, a partir de planos de saúde, o resultado é ainda mais preocupante. Em Juiz de Fora, o percentual de partos cesáreos em 2020, em maternidades exclusivamente privadas, foi de 77,89%. Nas maternidades mistas, que são aquelas que atendem ao SUS e à rede suplementar, a taxa foi de 59,79%. Já nas maternidades exclusivamente SUS a taxa foi de 42,99%.

Mas esse não é um cenário novo para o município. “É a realidade de muitos anos, agravada em 2020 e 2021 pela pandemia da Covid-19, quando tivemos elevado número de internação de gestantes acometidas pela doença com desfecho perinatal ruim, havendo elevado índice de morte materna por Covid-19. Previamente, muitas também tiveram indicação de cesárea na tentativa de preservar a vida fetal”, informou a Secretaria de Saúde.

Dentre as principais indicações na rede pública, que são responsáveis pela elevação das taxas de cesárea, a Secretaria destaca os casos de iteratividade. “São gestantes que já possuem três, quatro ou mais cesáreas anteriores e que fatalmente farão nova cesariana.” 

Outro fator apontado pela Secretaria Municipal de Saúde é a ausência de um pré-natal adequado. “Dentre várias causas, as ‘toxemias gravídicas’ (pré-eclâmpsia /eclâmpsia) têm grande prevalência após a vigésima semana, estendendo-se durante todo o decorrer da gestação e se não tratadas e acompanhadas adequadamente, podem evoluir para quadros agudos, havendo necessidade de interrupção da gestação. E, muitas vezes, opta-se pela cesariana nesses casos.”

Para a médica obstetra, Mariana Sirimarco, um dos fatores que explicam os números elevados na cidade é a própria assistência e as condutas médicas. “Dos hospitais que atendem pelo SUS, só o João Penido segue realmente os preceitos da atenção humanizada ao parto. Nos outros hospitais, o que vemos é uma mudança de cenário a partir das próprias pacientes, que começam a chegar com essa demanda, e também após a Lei de Doulas (2016). Mas a gente ainda vê protocolos muito antigos e que não há uma uniformidade no atendimento do SUS.”

A gente ainda vê protocolos muito antigos e que não há uma uniformidade no atendimento do SUS”, diz Mariana Sirimarco (Foto: Divulgação)

A forma de remuneração é outro fator apontado pela obstetra. “O médico recebe por aquilo que produz além do plantão. Acho que tudo isso acaba contribuindo para que se tenha um aumento no número de cesáreas. Se o médico, por exemplo, acompanha um trabalho de parto por dez horas, e o bebê nasce no plantão do outro colega, quem recebe é esse colega que não acompanhou o trabalho de parto como um todo. No João Penido, a situação é diferente. Os profissionais recebem por plantão e não por produção. São essas coisas que contribuem para que isso aconteça na cidade.”

O professor e ativista pelo movimento humanização do parto em Juiz de Fora Mateus Clóvis Costa, que defendeu tese de doutorado em Economia pela UFJF sobre os impactos econômicos da taxa de cesáreas, considera a questão da remuneração e a busca por momentos de lazer como determinantes. Ele inclui ainda o risco de implicações judiciais em decorrência de acusações de negligência. Tais fatores têm feito com que obstetras  pratiquem “a medicina  defensiva” via indução de demanda por cesariana, o que faz elevar as taxas desse tipo de cirurgia.

Em sua tese “Indução de demanda por cesariana no Brasil: contribuindo com a discussão sob o enfoque da economia da saúde”, defendida em 2018, Mateus estimou que o setor público gasta, no mínimo, R$ 10,5 milhões e o setor privado R$ 17,6 milhões com cesáreas sem necessidade.

“A cesariana é muito mais cara para o sistema como um todo. Pelo custo do médico, a necessidade do centro cirúrgico, os medicamentos usados. Mas, se o custo é maior e ela traz tantos malefícios para o sistema, para a gestante e para o bebê, por que continua sendo assim? O fato é que existe toda uma questão cultural, a formação em um perfil cesarista e também a ideia de que quando se fala em sistema de saúde, o custo é das instituições.”

Outro movimento apontado pelo professor é a cultura de “limpar o plantão”. “Existe uma prática em que o médico acaba finalizando os atendimentos para o que colega que irá assumir posteriormente chegue com o ‘plantão limpo’. E essa cultura acaba direcionando para a cesárea.”

A médica obstetra e professora de obstetrícia no Departamento Materno-infantil da UFJF, Maíra Lorenzo, atribui o alto índice de cesáreas, sobretudo na rede privada, à “cultura do cuidado um para um”, que ainda é o mais prevalente na saúde suplementar. “A gestante se vincula a ‘seu’ médico e espera que seu parto seja assistido por ele. Porém, essa relação funciona se o parto acontece com dia e hora marcados, como nas cesáreas eletivas. Na assistência ao parto normal, esse vínculo é impraticável quer seja pela impossibilidade do obstetra estar sempre à disposição, ou pela baixa remuneração que os planos de saúde oferecem (financeiramente, um dia inteiro de consultório pode ser mais lucrativo que um parto).”

Ainda segundo a médica, a assistência ao parto vaginal só funciona bem se for feita em equipe. “Enquanto não mudarmos essa mentalidade, a cesárea continuará sendo maioria. Na rede pública, não existe, a priori, essa correspondência entre quem faz o pré-natal e quem assiste ao parto. Normalmente a gestante que fez pré-natal no SUS vai parir no plantão da maternidade que é referência na sua área.” Para Maíra, a existência de plantões de obstetrícia nos hospitais particulares da cidade é recente e vem promovendo mudanças na dinâmica da assistência obstétrica das pacientes que utilizam planos de saúde.

E um dos movimentos para a mudança dessa relação na saúde suplementar foi iniciado pelas próprias médicas Mariana Sirimarco e Maíra Lorenzo no Hospital Albert Sabin, em 2018, com a criação de uma equipe de atendimento de urgência e emergência em ginecologia e obstetrícia, com foco no parto natural. 

Segundo dados do Painel de Indicadores de Atenção Materna e Neonatal, da Agência Nacional de Saúde (ANS), os números de partos cesáreos na rede particular vinham decrescendo desde 2017, de 70,69% para 69,26%, e foi ampliado para 77,89% durante o primeiro ano da pandemia. Mas, segundo Mariana Sirimarco, antes da implantação do painel, os índices eram ainda mais graves.

“A gente conseguiu um avanço enorme nos últimos sete anos. Juiz de Fora era uma cidade com menos de 1% de partos vaginais dentro da rede privada. Hoje, tem meses em que chega a 30%. É pouco, mas é um crescimento enorme em um curto período de tempo. A doula consegue trabalhar, muitas vezes as gestantes têm outros auxílios, como uma enfermeira obstétrica. Eu desconheço no Brasil alguma cidade que tenha um trabalho igual o nosso, essa assistência que conseguimos fazer pelo plano de saúde, sem gasto extra para que a gestante consiga um parto humanizado, um parto vaginal.”

Ela também aponta a importância das ações baseadas em evidências científicas, mudança de cultura, formação e atualização de profissionais. “A gente não defende o parto humanizado porque é bonito. Defende porque ele é fisiológico, porque ele só traz benefícios para mãe e bebê, porque estabelece um vínculo melhor na amamentação e porque garante um bebê mais saudável. Quando eu cheguei em Juiz de Fora, ninguém atendia parto normal. Vim de uma escola onde aprendi a fazer parto sem intervenção nenhuma, sem episiotomia, sem força. Dessa minha necessidade de poder trabalhar da forma que eu sabia, acabei trazendo outras pessoas comigo. É muito gratificante a gente trabalhar e começar um movimento assim.”

“A gente não defende o parto humanizado porque é bonito. Defende porque ele é fisiológico, porque ele só traz benefícios para mãe e bebê, porque estabelece um vínculo melhor na amamentação e porque garante um bebê mais saudável.”

Maíra destaca a importância de ações nas esferas micro e macro, como respeito às políticas de saúde. “No meu caso, procuro fazer um pré-natal de qualidade, com informações atualizadas e respeito à decisão da paciente. Como professora, sempre incluo nas aulas uma discussão ampliada sobre como mudamos o sentido de parir ao longo do tempo e como essas mudanças foram influenciadas por interesses políticos e financeiros. Acredito que a formação médica baseada na ciência e na humanização seja uma das formas mais potentes de mudança.”

Aprovada há 5 anos na Câmara Municipal, Lei de Doulas representou vitória de movimento da humanização do parto na cidade (Foto: AMMA/Divulgação)

Movimentos pela humanização em Juiz de Fora

Há pelo menos 20 anos, grupos localizados de profissionais de saúde e iniciativas da sociedade civil organizada lutam por uma mudança do modelo de assistência ao parto em Juiz de Fora. 

Inaugurada em 14 de dezembro de 2001, a Casa de Parto em Juiz de Fora foi um marco na humanização no município, sendo a terceira instituição do país, sob a coordenação da professora Betânia Fernandes, da Faculdade de Enfermagem. Ocupando cerca de 20 cômodos da Rua Santo Antônio, nos fundos do Restaurante Universitário unidade Centro, e com capacidade para atender, simultaneamente, até três parturientes, o espaço dispunha de uma equipe de enfermeiras obstetras, auxiliares de enfermagem, auxiliares de serviços gerais, assistente social e estudantes, com todo o atendimento via SUS. Ao longo de seus sete anos, até o seu fechamento, foram realizados 703 partos.

“Foi uma mudança muito grande no modelo de atendimento perinatal na cidade. Durante muitos anos, foi a única casa de parto vinculada a uma instituição de ensino e apartada de um hospital. E também uma grande escola para nós”, lembra a enfermeira obstetra Lorena Andrade, que foi aluna de Betânia e hoje atende partos e integra uma das equipes de parto domiciliar em Juiz de Fora.

A Casa, no entanto, teve suas atividades encerradas em 2008, deixando 129 gestantes sem este amparo e gerando protestos, manifestações e audiências públicas na Câmara Municipal, mas a decisão não foi revertida. No projeto do novo Hospital Universitário (HU-UFJF/Ebserh) existe uma proposta para Casa de Parto, “seguindo todas as exigências necessárias para o atendimento humanizado, segundo diretrizes do Ministério da Saúde, inclusive a presença de uma maternidade atrelada a ela. No entanto, as obras do novo HU estão paralisadas, como é de conhecimento público”, informou a assessoria.

Outra iniciativa, também no âmbito do SUS, foi a inauguração da maternidade Viva-Vida do Hospital Regional João Penido, que foi pioneira na implantação do quarto PPP (pré-parto, parto e pós-parto). Referência regional para gestações de alto risco e pioneiro na implantação do método Canguru, a unidade focava no parto humanizado e com a presença de enfermeiras obstetras.

Em 2010, foi criada a Aliança de Mulheres pela Maternidade Ativa (Amma), com o objetivo de ampliar o debate da humanização na atenção às gestantes e puérperas e também discutir a existência de formas seguras de gestar e parir. “Nos anos anteriores a cidade havia sofrido uma perda lastimável com o fechamento da Casa de Parto e nós não podíamos deixar que toda a luta e movimento iniciado naquele momento se dissipasse, como se fosse uma perda irrelevante para a cidade”, lembra uma das idealizadoras da associação, Soraya Perobelli.

A partir da demanda de legalizar o acesso das doulas nas instituições da cidade, o grupo buscou o poder público para que a pauta desta reivindicação das mulheres de Juiz de Fora ganhasse visibilidade e representatividade. “Procuramos o então vereador Jucélio Maria, que prontamente acolheu nossa proposta e levou a Lei das Doulas para a votação na Câmara Municipal. Realizamos visitas junto a todos os vereadores para entregar o Projeto de Lei, para que, no momento da votação, todos tivessem conhecimento do que estava sendo discutido. A participação em massa das famílias que ansiavam pela aprovação da lei foi fundamental para que o resultado desta segunda votação fosse favorável à aprovação da Lei”, lembra Soraya. A norma foi aprovada há cinco anos, em dezembro de 2016. “A aprovação da Lei trouxe para a cidade a certeza de que as mulheres têm voz, poder, e conhecimento para buscarem o melhor atendimento para si e para suas famílias.” 

Segundo a psicóloga e doula Carolina Duarte, quando ocorreu a aprovação, Juiz de Fora contava com apenas três doulas: ela, Lorena Andrade e Tássia Januário. “Só a partir daí que se começa a haver uma estrutura de diálogo entre médicos e doulas, pois até então éramos tidas como bruxas. E nesta época estávamos formando a nossa primeira turma de doulas pelo Gerando.”

A enfermeira obstetra Lorena Andrade lembra que um dos pedidos de mudança na lei era a necessidade de que para acompanhar as gestantes, as doulas deveriam estar vinculadas a uma associação. “Muitos médicos questionavam a quem iriam se reportar em caso de mau comportamento da doula, já que não é uma profissão regulamentada.” 

Ainda conforme Lorena a parte do movimento social já está avançada no município, mas no sistema de saúde ainda é preciso que haja novos olhares e iniciativas. “Acredito que a grande mudança que precisa ser feita é a compreensão tanto no sistema público quanto no complementar de que é necessário um olhar multidisciplinar, que inclua doula, enfermeiro obstetra atuante. A inserção de novos olhares seria uma uma das uma das chaves de virada porque cada profissão poderia agregar aquilo que é de sua competência.”

“Muitos médicos ainda ignoram nossa presença”

Se há cinco anos eram apenas três doulas, hoje a Associação de Doulas de Juiz de Fora conta com 60 profissionais cadastradas e é cada vez maior o número de mulheres que busca este tipo de acompanhamento. Segundo a presidente da Associação, Tatiana Di Sabbato, o grupo investe na formação continuada das profissionais, como o que ocorreu na última semana, além do desenvolvimento de projetos de doulagem voluntária, em parceria com outras entidades.

Pelo código de ética, a doula não interfere em procedimentos técnicos. Mas, segundo evidências científicas, sua presença faz com que o risco de cesárea seja reduzido em 39%, reduz em 10% a necessidade de analgesia, em 38% o número de bebês com Apgar baixo e aumenta a confiança da mulher em relação ao próprio parto. Além disso, o acompanhamento faz com que a gestante chegue mais tarde ao hospital.

“Existe uma melhoria do cenário em Juiz de Fora, mas mesmo com a lei e com toda informação, há lugares em que somos impedidas de entrar.” Na pandemia, muitos hospitais passaram a impedir a entrada das doulas, e o movimento de retorno tem sido gradual, variando conforme o protocolo de cada hospital.

No entanto, segundo Tatiana, mesmo antes da pandemia havia muitas situações em que elas eram impedidas de acompanhar a gestante. “Muitos médicos ainda ignoram completamente a nossa presença e algumas profissionais já foram destratadas”, conta.

“Parir no meu ambiente, com pessoas em quem confiava, me trouxe muita paz”, relata a administradora Luana Villas Boas (Foto: Arquivo pessoal)

Pelo direito de escolher

A administradora Luana Villas Boas teve dois partos domiciliares, um no Rio de Janeiro, em 2015, e outro em Juiz de Fora, em 2019, e escolheu este modelo desde quando começou a se informar melhor sobre os procedimentos. “Comecei a pesquisar muito e sempre quis ter parto normal. Estava com uma médica humanizada, mas mesmo assim ficava muito tensa de pensar no hospital. Assisti a documentários, vídeos e, com 34 semanas, decidi que queria o domiciliar.”

E assim foi no primeiro e no segundo parto. No mais recente, em Juiz de Fora, quando vieram os primeiros sinais e contrações, estava tudo dentro do previsto, mas não por isso ocorreu sem emoção, segundo a administradora. “Quando eu já tinha começado a fazer força e encontrado uma posição razoável, a borda da piscina rasgou e fui para o chão, tentando achar uma posição, sendo que já estava no expulsivo e as contrações praticamente sem intervalo. Então fiquei de joelhos no chão me apoiando num banquinho, na bola e na doula. Minha filha veio direto pros meus braços, me escoraram pra minha cama no quarto ao lado e ela mamou. Esperamos o cordão parar de pulsar a placenta saiu logo depois. Parir no meu ambiente, com pessoas em quem confiava, me trouxe muita paz”, relata.

A nutricionista Anelisa Rezende teve o parto normal há um mês e, segundo ela, os preparativos vieram antes mesmo da concepção. “Eu já pensava em vivenciar a maternidade com mais consciência, então buscava muitos documentários, acompanhava perfis com essa visão mais humanizada e quando engravidei busquei uma equipe com obstetra e doula que iriam me apoiar nessa decisão de parir naturalmente.”

Durante a gestação, ela conta ter tido um acompanhamento muito privilegiado. “Fazia yoga, watsu, que é uma terapia, para estar tranquila e ampliar a percepção corporal para que eu pudesse me perceber melhor. Mas tive medo a gravidez inteira. Medo de morrer, de que algo acontecesse com ela. Até medo de fazer cesárea, o que consegui trabalhar ao longo do tempo.”

No início da gestação, seu exame apontou diabetes e sua idade gestacional não poderia ultrapassar as 40 semanas. “Chegando próximo deste prazo, minha bolsa rompeu, mas não entrei em trabalho de parto. Bem depois fui para o hospital tomar o antibiótico e minha médica explicou os prós e contras da indução. Eu já tinha feito tudo que conseguia, mas não tinha nem os pródromos. Então usamos a medicina a nosso favor, e aí as contrações começaram a engrenar e entrei em trabalho de parto ativo. Fui para o chuveiro, abracei a bola e ela nasceu ali, diferente do que tinha imaginado, mas da forma mais especial de todas, que foi a forma que eu e ela aguentamos.”

A professora Raquel Marques de Oliveira não teve toda essa preparação antes da concepção, mas começou a buscar informações assim que descobriu a gestação. “Na verdade foi um susto, pois sou mãe solo e não tinha outras amigas com filhos com quem pudesse conversar, então a doula foi fundamental.” No meio da gestação, ela também descobriu a diabetes gestacional e teria que parir até 40 semanas. “Fiz muitas massagens, descolamento de placenta, tive alguns pródromos, mas nada de trabalho de parto. Internei para os procedimentos de indução e uma médica de plantão muito séria e seca me atendeu e falou que só ia me internar porque minha médica tinha falado que era para internar.”

A professora fez o atendimento particular, mas escolheu o SUS para o parto. Em três dias, ela ficou tomando remédios para a indução, fez o uso do balão e começou a sentir as contrações. “Quando essa mesma médica me viu, ficava entrando o tempo todo no quarto e perguntando para as outras enfermeiras: ‘Essa menina ainda não ganhou? Essa criança não vai nascer?’. Eu ouvia e ficava incomodada, fora a exaustão de ficar três dias internada, fazendo exame de toque o tempo todo e sem evolução. Então pedi a analgesia quando falaram que tive uma parada de progressão de 7 cm para 8 cm.”

Raquel disse que as enfermeiras foram até ela, conversaram e aconselharam a cesárea, pois o parto não estava evoluindo. “Eu aceitei, mas tive uma grande frustração. Essa mesma médica foi a que fez a cesárea e comentou com outras pessoas: ‘Está vendo, pra que tanta teimosia?’ E eu achei que houve uma violência ali.”