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Colunas

As camadas da guerra

Geralmente uma boa história é uma boa história porque vai além da sinopse do vendedor de livros on-line (na livraria, a história é outra). O velho e o mar, de Hemingway, é bem mais profunda do que um velho que vai para o mar pescar; se o título fosse a síntese, Ninguém escreve ao coronel, de García Márquez, poderia ter sido publicado em branco.

Para essas e tantas outras histórias, há camadas que passam da narrativa principal a estilos literários, relações com personagens, influências do contexto sócio-cultural, entre tantas outras análises possíveis. Entre teorias e olhares distintos, surgem releituras de histórias antigas e os debates seguem. O principal é que haja fundamento por trás dos pitacos de cada versão levantada.

Isso também vale para o cinema e outras linguagens. Matrix explorou a transmidialidade em quadrinhos, animações e jogos entre o primeiro e o segundo filme. Quem foi somente ao cinema tem leituras diferentes das de quem explorou as outras plataformas. O mesmo vale para o monstro que a Marvel criou desde Homem de ferro, indo além de ações entre um filme e outro.

Quando um texto (e toda narrativa pode ser considerada um texto, não importa a linguagem utilizada) ganha interpretações diferentes a cada leitura significa que ele tem camadas de significação. O Gerard Genette fala desses palimpsestos, que são como o couro usado para a escrita na Idade Média: é mais fácil raspar a tinta e escrever por cima do que curtir mais coro, o que significa que o texto antigo deixa marcas no tecido. Atualizando o exemplo, é como escrever a lápis, apagar e escrever por cima: há resquícios da escrita anterior sob a palavra nova.

No pedaço de couro constantemente raspado e reescrito chamado Palestina ou Israel, conforme a preferência, as novidades são poucas e claras. Guerra não é uma delas.

Uma das novas camadas de informação dessa narrativa milenar se deve às tecnologias. Câmeras menores, com imagens mais detalhadas e capazes de se movimentar sozinhas (geralmente guiadas por alguém remotamente) mostram detalhes que antes estavam restritos aos testemunhos oculares ou às narrativas coletadas depois do trauma gerado. Agora elas circulam pelo mundo ao vivo.

E circulam porque todo mundo está conectado, ou pelo menos todo mundo que você conhece e com quem comentou sobre a guerra. As crianças, principalmente elas, geram a pena dos que acompanham aqui de longe o conflito. Parece mesmo que a mídia optou por essa angulação desta vez.

As armas também são mais modernas, mais poderosas e talvez até doutrinadas para matar somente quem não for do partido que apertou o gatilho (foguetes são lançados por gatilhos?). Os manuais é que não devem mais acompanhar as armas, mas podem ser baixados por QR Code. Isso não vem na sinopse do catálogo online porque geralmente há um Senhor das armas, como no filme com Nicolas Cage, por trás desse mercado.

As demandas da guerra na Ucrânia começaram a baixar e precisavam de outra praça para novas armas. África? Sempre uma boa, mas para negócios de longo prazo. Quando tem produto novo no mercado ou necessidade de fazer o capital circular, melhor um conflito com gente mais rica, como o pessoal de Israel.

Justificar é fácil: tem religião, geopolítica, História, opinião pública e a narrativa impregnada nas pessoas que não são de lá de que aquele lugar no mundo está sempre em guerra. Em conflito sim, como no Rio de Janeiro também e todo mundo vai pro Carnaval, pro Ano Novo, pro final de semana curtir a praia e o museu.

Por que, realmente, aquela guerra está (de novo) acontecendo? Porque alguém quis. Quem? Geralmente as mesmas poucas entidades que nem aparecem no radar da mídia. O que se pode fazer é manter a indignação, porque normalmente quem morre no conflito não queria estar ali.