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Alvarengas

(Fonte: Intervenção de Camila Mateus sobre foto reprodução TV Globo)

Alvarenga, personagem criado e interpretado por Jô Soares, estava sempre se martirizando por ter confiado em alguma notícia que claramente não aconteceria e de fato não tinha se concretizado. Por exemplo, quando o governo prometia a queda da inflação, mas os preços continuavam nas alturas, ele logo se autoflagelava, gritando desesperado: “Eu acreditei, eu acreditei!!!” Parece que hoje vivemos em um país de Alvarengas ainda mais ingênuos, que não apenas acreditam, mas espalham, sem culpa, os contos surreais que lhes chegam aos olhos e ouvidos.

Da grávida de Taubaté aos 20 centavos, do comunismo do técnico Tite à visão social dos jogadores de futebol, as crenças se espalham com a velocidade da sombra ao atravessar a terra plana. No livro “Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas?”, o americano Michel Shermer lista alguns dos fatores motivadores que reúnem como cúmplices de certezas improváveis perfis os mais variados, inclusive de pessoas muito inteligentes e com acesso às melhores informações. Mas um chama atenção: “Elas querem acreditar”. Por quê? Porque se sentem melhor, consoladas, confortadas.  

Bastou uma entrevista diferente do estilo Tite de ser para, em minutos, instalar-se uma histeria coletiva no país. Apresentando-se como porta-voz dos jogadores, o técnico deu a entender um descontentamento de todos com a disputa da Copa América no Brasil. E só. A partir daí, ele e todo o elenco foram pintados como heróis revolucionários em prol da sociedade, por um lado, e pichados como comunistas, traidores e antipatriotas, por outro. O capitão Casemiro ainda colocou mais gasolina na fogueira, dizendo que a posição deles era clara e que todos sabiam (parênteses para o repórter Eric Faria, que, no ato, rebateu: “eu não sei”). 

Nos dias seguintes, algumas piadas do meio futebolístico foram, espantosamente, levadas muito a sério. Brotaram “notas oficiais” do Corinthians e de outros clubes afirmando que se retirariam das competições sul-americanas deste ano e não cederiam jogadores para a seleção. Os “documentos” foram compartilhados por gente importante, incluindo jornalistas, médicos, advogados e uma galera de norte a sul do país. Teve até cineasta. Mensagens como “não torço para tal time, mas aplaudo a atitude”, ou, pior ainda, “Esse é o meu Corinthians”, “Amo esse time”, inundaram a internet. Poucos tiveram a cautela ou curiosidade de checar as informações. Corinthians e os demais envolvidos não mais disputam essas competições e não têm jogadores convocados. Logo, era só zoeira dos adversários.Mas as pessoas quiseram acreditar no bom senso de dirigentes de futebol brasileiros. Por quê?

Não havia questões político-partidárias, nem preocupações sanitárias com a pandemia, muito menos solidariedade à secretária que estava sendo assediada, fato supostamente conhecido por muitos dentro da CBF.

Qualquer consulta a publicações de jornalistas off-label sérios dava conta de que o descontentamento dos jogadores e da comissão técnica da seleção envolvia o péssimo relacionamento com o então presidente da CBF, Rogério Caboclo, e a preocupação com o período de férias pelos que atuam na Europa. Além disso, esta será a quarta Copa América em seis anos, causando um excesso de jogos no calendário já apertado do esporte. Ao propor a disputa no Brasil sem consultar nem comunicar o fato ao elenco, Caboclo gerou um sentimento de traição entre comissão técnica e jogadores, e isto foi a gota d´água. 

Ou seja, não havia questões político-partidárias, nem preocupações sanitárias com a pandemia, muito menos solidariedade à secretária que estava sendo assediada, fato supostamente conhecido por muitos dentro da CBF. Eram apenas reclamações de direitos trabalhistas e insatisfação com a relação profissional com o chefe. Tanto que, após o afastamento do então gestor, o movimento resumiu-se em um manifesto chocho, vago e genérico, tendo o mesmo efeito pífio das bem redigidas notas de repúdio de nossas prestigiosas instituições. 

Por que se esperou tanto deles? Por que essa ânsia por acreditar em algo tão improvável? Por que projetar um Che Guevara em Tite ou um ativista social em Neymar? A intensidade de esperança e ódio é tamanha que nossa visão está cada vez mais comprometida. Projetamos heróis e vilões nos outros, cobramos atitudes dos outros, temos certezas absolutas e aprendemos a ter opinião sobre tudo, inclusive e principalmente sobre o que não temos domínio, o que gera frustrações ou a construção de mundos paralelos intransponíveis. 

Dentro destes mundos e muros, tornamo-nos presas fáceis para todo tipo de fake news ou de discursos com brechas para encaixarmos desejos pessoais e coletivos, não importando o grau do nosso conhecimento. Se isto acontece com informações nos dadas por estranhos, já pensaram como ocorre em igrejas, em especial nas periferias? Em consultórios médicos? Em qualquer espaço onde nos capturam a confiança?

A propósito, sabe a doutora Luana? Eu me apaixonei, eu me apaixonei!!!!