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O Estado e a face brutal do extermínio da população preta

Manifestantes protestaram na Avenida Paulista, região Central de São Paulo, em homenagem aos mortos em ação no Jacarezinho (Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas)

Creio e ouso dizer que a absoluta maioria das leitoras e leitores de O Pharol que agora se depara com essa coluna tem o mínimo entendimento sobre a formação social do Brasil. Pois bem, como sabemos, ela é tributária da composição de três matrizes étnicas provenientes da Europa, África e América. Isso implica dizer de forma objetiva que a população brasileira é repleta de perfis miscigenados dos mais variados fenótipos, com os quais deveríamos ter aprendido a respeitar e conviver ao longo desses mais de quinhentos anos de história. A diversidade étnica deveria significar o caldo cultural de nosso reconhecimento enquanto nação e servir de projeto para a construção de uma sociedade cujo preconceito, a discriminação e o racismo se desfigurassem frente às garantias constitucionais e ao Estado Democrático de Direito.

Passamos por 322 anos de dominação colonial, cerca de 350 anos de escravização de seres humanos nestas terras, arrancados a ferro e fogo de seus reinos, de suas comunidades, de suas famílias. Depositados como coisas em navegações chamadas de tumbeiros, não por acaso, dado a grande mortalidade assistida no interior dessas embarcações. Transportados pelo Atlântico para um lugar desconhecido, inóspito, sob condições das mais cruéis e ultrajantes possíveis, muitos dos pretos novos – como eram chamados os recém-chegados da África ao Brasil – não sobreviviam, restando como destino derradeiro as valas comuns onde eram despejados seus corpos.

Ao aportarem nessas paragens tropicais, ali mesmo, no cais do Valongo, no Rio de Janeiro, ou da Cidade Baixa, em Salvador, ou na Rua do Bom Jesus em Recife, ou na Cafua das Mercês em São Luís, prosseguia o ritual dos corpos vilipendiados, coisificados e transformados em mercadorias. O tráfico de escravizados foi um empreendimento de desumanidade e desumanização das mais repugnantes da história. Compreender as motivações e os fatores que o colocou em curso, bem como suas consequências contemporâneas, implica um esforço de reflexão e reconhecimento de que processos históricos forjam uma sociedade, enrijecem determinadas categorias culturais, políticas e sociais, que de tempos em tempos devem ser postas em evidência e contestadas em prol do bem comum, da justiça social, da equidade e da igualdade de direitos.

Por séculos a população negra desse país sofreu com a escravização. Institucionalmente, o trabalho escravo foi extinto em 13 de maio de 1888 sem, no entanto, cessar as agruras de sua nefasta herança. Não existiu reparação por parte do Estado, sequer um projeto de inserção da população negra na sociedade brasileira, outrossim, prevaleceu o racismo estruturado sob um perverso manto de democracia racial, sob o qual ainda se insiste na retórica de que não existe esse tipo de coisa no Brasil.

– Aqui não existe racismo, diz um.

– É mesmo, você tem razão! Isso é coisa dos Estados Unidos, emenda o outro.

– Veja só: no Brasil nunca teve apartheid como na África do Sul.

A conversa continua:

– Pra você vê como não sou racista. Já namorei uma garota moreninha, até tenho uma tia casada com um homem negro. A gente se dá super bem!

– Pois é, eu mesmo tenho amigas e amigos que são mais escurinhos.

 E quando se deparam com as constantes notícias que majoritariamente afetam a população negra do país, trata-se apenas de fatalidades, de mimimi, armação da imprensa para colocar os brasileiros uns contra os outros, e por aí vai.

Fato é que negras e negros permanecem sendo os mais impactados com a exploração demasiada do trabalho; com o desemprego e o subemprego; com os piores salários; com as maiores taxas de homicídios, três vezes mais que a de brancos; com o preconceito; com o descaso; com a indiferença; e com a criminalização da sua cor. Habitam moradias inadequadas em áreas de risco constante, sem as condições mínimas para seu bem-estar, com acesso precário aos serviços públicos básicos, sem lazer e possibilidade de desenvolvimento social e econômico.

Quando se trata da mulher negra, ela encontra-se na base da pirâmide, é a maior vítima de feminicídio, de violência doméstica, de assédios moral e sexual. Aquela que recebe o menor salário, a que mais sofre com o desemprego e o subemprego. Nos núcleos familiares monoparentais, as mulheres negras aparecem como maioria das chefas de família, tendo que arcar sozinhas com a criação dos filhos, sem sequer contar com políticas públicas assistenciais em muitos casos.

Quando se trata da mulher negra, ela encontra-se na base da pirâmide, é a maior vítima de feminicídio, de violência doméstica, de assédios moral e sexual.

Para uma considerável parcela do povo preto e pobre desse país, o Estado representa a opressão, a violência, o medo e a morte. Isso subverte seus estatutos constitucionais, fragiliza as instituições e esvaece o espírito democrático. Seu poder de polícia através do braço armado, nos territórios demarcados pela desigualdade social, pela pobreza e pela cor da pele, o “combate à criminalidade” atua não para proteger a população da violência, mas sim estigmatizá-la como o próprio produto do crime, da contravenção. Assim, sua condição de cidadania é rebaixada, se tornam corpos descartáveis.

O Estado brasileiro consente o genocídio negro enquanto segue o curso do aniquilamento dos povos indígenas há mais de quinhentos anos. Não se trata, evidentemente, de uma política institucional de extermínio étnico ou racial, longe aqui de qualquer pensamento nesse sentido, ou seria até sem sentido. A questão em pauta é justamente problematizar e compreender o porquê que isso ocorre de forma sistemática em uma sociedade assentada sob as bases de um Estado Democrático de Direito, signatário de protocolos internacionais que visam garantir a defesa dos povos minoritários, dos menos favorecidos e excluídos e intervir em prol dos Direitos Humanos. 

Prevalece a omissão do Estado em responder com políticas públicas capazes de minimamente gerar segurança à população negra e periférica dos centros urbanos, de garantir a elas o direito de ir e vir, o direito supremo à vida, às liberdades civis e a justiça como qualquer outro cidadão, sejam quais forem as suas condições. Esse é o retrato de uma história de exploração e exclusão sistemática, de segregação e violência que se perpetua até os dias de hoje sob a lógica do extermínio, do “tiro na cabecinha”.

Sob essa lógica, vidas como a da jovem grávida Kathlen Romeu são sistematicamente ceifadas a rajadas de fuzil, famílias dilaceradas, e a segurança pública desmoralizada, vide operações como a do Jacarezinho. O lugar que corpos pretos habitam e transitam cotidianamente se torna um território perigoso, hostil, cujos direitos mais sagrados são violados, a lei ignorada, a justiça adulterada. Onde o juiz usa farda, o tribunal é a rua, o beco ou o barraco, e a sentença, em casos não raros, infelizmente é a morte.