A vida dos outros

Bióloga revela os bastidores do combate à pandemia em Juiz de Fora

Cecília Kosmann, natural de Florianópolis (SC), atuou como gerente do Departamento de Vigilância Epidemiológica e Ambiental da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) nos últimos três anos, além de ter ocupado o cargo de subsecretária de Vigilância em Saúde (Foto: Arquivo pessoal)

Acompanhar uma pandemia em tempo real, com um volume enorme de informações, mas sem coesão. Gerenciar a apreensão, os medos e a ansiedade. Reorganizar o fluxo de trabalho da equipe, criar protocolos inéditos e, ainda, adiar planos pessoais e controlar a saudade dos familiares. Tudo isso, além da falta de um comando nacional na luta contra a Covid-19, foram alguns dos desafios enfrentados pela bióloga Cecília Kosmann, pós-doutora em Biociências pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e doutora em Biologia Animal pela Universidade de Brasília, com doutorado-sanduíche na Florida International University.

Kosmann, natural de Florianópolis (SC), atuou como gerente do Departamento de Vigilância Epidemiológica e Ambiental da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) nos últimos três anos, além de ter ocupado o cargo de subsecretária de Vigilância em Saúde. Em março deste ano, a profissional pediu afastamento das suas funções para cuidar da sua saúde física e mental, abalada pelos desafios enfrentados durante a pandemia.

E um dos principais aprendizados que ela vai carregar para a vida, após enfrentar esta “guerra sanitária”, foi valorizar a humildade. “Saber que a gente é muito pequeno e que não sabemos de nada.”

Era uma Quarta-feira de Cinzas, 26 de fevereiro de 2020. Enquanto muitos se recuperavam dos dias de folia do último Carnaval que tivemos, Cecília recebia o primeiro caso suspeito em Juiz de Fora do novo coronavírus que, posteriormente, foi confirmado pelo Boletim Epidemiológico do Estado em 14 de março.

“Sabíamos que a doença chegaria à cidade devido à proporção que estava tomando. No início de janeiro, ainda era um problema muito localizado. Não havia uma apreensão tão grande. Mas na medida em que foi chegando em direção ao novo mundo, começamos a constatar que o perigo estava próximo. A partir daí, começamos a organizar os protocolos, sempre em conversa com o Estado. Nossa preocupação era saber o que fazer quando a Covid-19 chegasse à região. As perguntas eram muitas: como coletar as amostras, para onde mandar, como isolar os infectados?”.

A total falta de informação inicial foi um dos obstáculos enfrentados pela gerente de Vigilância Epidemiológica. Na época, não existia uma ficha de notificação e nem um sistema que gerenciasse as informações. Procedimentos de como fazer o manejo e o velório de um corpo infectado pelo coronavírus também eram outra preocupação latente, já que as vítimas da Covid-19 podem abrigar o vírus dentro do organismo, mesmo após a morte.

“Dispúnhamos de muitas informações, mas ao mesmo tempo não eram suficientes. Era paradoxal. Dependíamos das diretrizes do Ministério da Saúde (MS) e isso aconteceu de forma ineficiente. Essa falta de informação foi tensa”, relata Cecília Kosmann.

“Só sabíamos o que tínhamos que fazer quando chegasse a doença: isolar e coletar. Utilizamos um protocolo semelhante ao do H1N1. Um fato nos angustiava muito, que ao mesmo tempo era bom e ruim: estávamos acompanhando a evolução da epidemia em tempo real. Dispúnhamos de muitas informações, mas ao mesmo tempo não eram suficientes. Era paradoxal. Dependíamos das diretrizes do Ministério da Saúde (MS) e isso aconteceu de forma ineficiente. Essa falta de informação foi tensa. Já tínhamos vários casos e mortes confirmadas no Brasil, mas não se falava em uso obrigatório de máscara porque a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) não sabia ao certo a eficácia desse equipamento de proteção individual, o que aconteceu somente em abril”, relembra.

Entrevista em período anterior à pandemia (Foto: Gabriela Calazans)

Surto em casas para idosos

A vulnerabilidade das Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) a surtos de doenças respiratórias como a Covid-19 era outra questão preocupante para a Secretaria de Saúde. Logo no início da pandemia, em março, a Vigilância em Saúde e o Ministério Público criaram protocolos de segurança que foram repassados para todas as ILPIs da cidade.

Mesmo com essa orientação, em maio de 2020, sete idosos que moravam em uma residência geriátrica particular foram a óbito por Covid-19. Além das mortes, o surto ainda levou pelo menos mais dois pacientes à hospitalização e deixou infectada boa parte dos 26 moradores da unidade. Na época, os próprios parentes das vítimas consideraram se tratar de uma fatalidade, já que a instituição parecia cumprir todos os protocolos necessários para garantir a integridade e a saúde dos idosos.

“Nesse caso, mesmo criando os protocolos anteriormente, tivemos que agir rápido para diminuir os impactos. Acionamos imediatamente a fiscalização da Vigilância Sanitária, que passou, junto com o apoio do Ministério Público, a verificar semanalmente os relatórios das 22 ILPIs em funcionamento na cidade”, informa Cecília.

Heróis da saúde também adoecem

Quando pensamos em profissionais que estão na linha de frente na pandemia, nos vem logo à cabeça os médicos, enfermeiros e técnicos que atuam diretamente nos hospitais. Mas a Vigilância Epidemiológica é a principal fonte de dados para a saúde pública. E esse trabalho ficou ainda mais evidente no monitoramento da Covid-19. Durante a pandemia, o profissional da saúde foi alçado como herói, mas ele também tinha seus medos. E garantir a sanidade, a motivação e o engajamento dos colaboradores da Vigilância foram desafios para Cecília Kosmann.

“Reorganizamos nosso fluxo de trabalho para que não tivéssemos pessoas contaminadas e, consequentemente, baixa no trabalho. Nosso serviço não podia parar e necessitava ser presencial. Tínhamos que deixar nossa angústia de lado e seguir. Só que muitos estavam com medo de levar o vírus para a família. E as pessoas têm o direito de sentir esse medo e está tudo bem. Mas o meu papel também era manter a equipe animada e coesa, apesar do cansaço enorme do dia a dia. Era pesado, mas a equipe se uniu muito, um pegando na mão do outro. Mas é uma experiência meio surreal. Ninguém esperava passar por isso. No início, achávamos que a pandemia ia durar dois, três meses. E aí você começa a ver que já se passaram seis meses, oito, virou o ano e ainda vivemos essa realidade. É uma experiência que vai ficar marcada na vida de todos que estão na linha de frente”, enfatiza Cecília.

Comitê de Enfrentamento e Prevenção

A pandemia não trouxe apenas uma crise sanitária. Junto, vieram as crises política, econômica e humanitária. Entender o momento sobre todos os pontos de vista que compõem esse cenário também não foi e não é nada fácil. O “fique em casa” não era tão simples para muitas pessoas. Para ficar em casa era preciso ter renda. E essas discussões permearam todas as reuniões do Comitê Municipal de Enfrentamento e Prevenção à Covid-19 criado pela Prefeitura em abril de 2020. O órgão era formado por mais de dez entidades representativas e Cecília teve papel fundamental nas discussões colegiadas do Comitê, que se reunia toda semana em encontros virtuais que chegavam a quatro horas de debates.

“Eu que sou técnica, bióloga, sempre fiquei do lado técnico. No Comitê, foi a primeira vez que eu tive que pensar em outras vertentes e indicadores, não somente nos da saúde. Minha missão ali era levar as informações mais técnicas. Não era fácil. Não tínhamos respostas para tudo. Ninguém tinha. Qual a melhor hora de abrir ou de fechar? Sabia-se que vidas seriam perdidas. Mas a missão era para que perdêssemos o mínimo possível e que ninguém perdesse a vida por falta de assistência. E isso realmente não aconteceu. E a gente dependia da adesão da população. E isso foi muito difícil. Se dependesse de qualquer vigilância em saúde de qualquer município, o país teria fechado por algum tempo, concomitantemente, para reduzir drasticamente a transmissão do vírus. Mas a gente sabia que era impossível isso por falta de um comando central do Governo Federal”.

Boletins diários de casos confirmados e mortes

Quando começaram os primeiros óbitos por Covid-19 em Juiz de Fora, um boletim diário para a imprensa começou a ser divulgado pela Prefeitura, contendo os casos suspeitos, confirmados e as mortes. Esses dados também eram informados pela Vigilância.

“Todo e qualquer óbito na cidade obrigatoriamente passava por nós. Mas a gente tinha que se manter distante. Temos que não pensar muito no que está por trás daquele papel, que era um pai de família, um avô, uma mãe. É preciso se blindar um pouco para que possamos fazer o nosso trabalho de forma correta. Mas não é nada fácil, porque somos todos humanos. E, às vezes, você encontra um nome conhecido, uma pessoa que era do seu dia a dia e que veio a óbito. Isso mexe com o seu psicológico. O primeiro grande impacto que eu senti foi quando tivemos um óbito de uma criança de 9 anos sem nenhuma comorbidade. Outro caso que impactou foi a morte de um homem em uma semana e, na outra, a esposa também faleceu em decorrência da Covid-19. Aí você começa a pensar na família, nos sobrinhos, nos pais, e tem que continuar trabalhando, mas está tomado pelo medo de morrer”, relembra.

“O primeiro grande impacto que eu senti foi quando tivemos um óbito de uma criança de 9 anos sem nenhuma comorbidade. Outro caso que impactou foi a morte de um homem em uma semana e, na outra, a esposa também faleceu em decorrência da Covid-19. Aí você começa a pensar na família, nos sobrinhos, nos pais, e tem que continuar trabalhando, mas está tomado pelo medo de morrer”, relembra.

Um aprendizado que Cecília teve durante esse processo foi em relação ao medo. “Aprendi ao longo de 2020 que não podemos ter medo do vírus para não paralisarmos. Mas temos que ter respeito e tomar todos os cuidados possíveis. O coronavírus veio para nos mostrar a ser humildes. Humildes para reconhecer o que não sabemos. O apoio psicológico neste momento era fundamental, além da ajuda dos colegas. No meu caso, tinha que trabalhar com esta situação e longe da minha família, que mora em Florianópolis, pensando nos pais sozinhos no Sul do país. Se acontecesse alguma coisa, não ia poder ver e nem ajudar.”

Planos pessoais adiados e uma saudade enorme da família

A rotina estressante e o nível enorme de demandas para serem atendidas na guerra contra o vírus fez com que Cecília adiasse o casamento marcado para o dia 7 de novembro de 2020, em Florianópolis, que também não pôde ser realizado devido às normas de distanciamento social.

Estar longe da família, não acompanhar o desenvolvimento da sobrinha e adiar o casamento e outros projetos pesou, segundo Cecília (Foto: Arquivo pessoal)

“Adiar o casamento foi triste. Mas não era uma coisa vital, apesar de ter planejado tudo. Mas estar longe da família era muito penoso. Um pouco antes da pandemia, minha sobrinha nasceu e eu não pude conhecê-la. Para mim, o que pesou muito foi perder este início, o acompanhamento do primeiro aninho da minha sobrinha, e também ter que adiar os planos pessoais. Nessa época, o cansaço e o estresse já estavam em níveis altíssimos e eram estimulados pela falta de empatia das pessoas. Ouvia algumas afirmações dentro do Uber ou nas redes sociais que machucavam, do tipo: ‘Ah, mas agora só morre gente de Covid. Estão adulterando os dados para a Prefeitura receber verbas’. As pessoas estavam falando do meu trabalho, porque era eu quem divulgava. Era muito revoltante. Jogavam essa afirmação em qualquer lugar, seja na internet ou no dia a dia. E isso pesa para quem está fazendo um trabalho correto, estavam questionando a minha índole”, desabafa.

A chegada da vacina

Em janeiro de 2021, Cecília foi convidada a integrar a nova equipe de Governo da atual administração municipal de Juiz de Fora, agora como Subsecretária de Vigilância em Saúde. E, nesse momento, a Secretaria de Saúde lidava com duas situações: a chegada da vacina e a continuidade da pandemia. “Felizmente o Brasil tem uma grande experiência de vacinação por causa do SUS. Mas o grande problema desse início da campanha de imunização era gerenciar a escassez de vacina. Quando se tem fartura, você distribui para todas as unidades e a população tem acesso imediato. Mas a realidade não era essa. Todo mundo queria a vacina e não tinha para todos. Enquanto eu estive na Prefeitura, não havia remessas regulares do Ministério da Saúde. E duas preocupações eram constantes: ainda não havia doses para todos os públicos e tínhamos medo de pessoas que poderiam roubar a vacina para uso próprio ou para simplesmente destruí-las devido ao movimento antivacina. Nossa vontade era de vacinar todo mundo. Mas não era possível. Existia uma priorização feita pelo Ministério da Saúde, um Plano de Imunização que deixava margens para dúvidas. Depois começou a ter um fluxo mais regular da vacina. Literalmente lidávamos com gotas de ouro. Vivenciávamos situações inéditas como colocar polícia 24 horas na porta da Vigilância. Era um sistema de guerra mesmo”, relata.

Escolha pela saúde pessoal

Depois de atuar mais de três anos na saúde pública de Juiz de Fora, sendo um ano dedicado ao combate à pandemia, Cecília começou a sentir os desdobramentos físicos e emocionais consequentes das situações com alto nível de estresse que viveu. “Chega uma hora que a gente começa a ver que o corpo não vai bem, está adoecendo, seja física ou mentalmente. E você tem que fazer uma escolha pela sua saúde. No início de março, pedi minha exoneração do cargo. Naquele momento, achei mais prudente cuidar de mim. Por cerca de três anos, eu cuidei da saúde da população. Estava na hora de eu cuidar da minha, da minha família e do meu casamento”, revela.

E depois dessa longa caminhada — cheia de altos e baixos — numa verdadeira guerra contra um inimigo invisível, Cecília conclui que estar ali naquele momento, na linha de frente, foi importante para ela enquanto profissional e também como pessoa. “É nas situações difíceis que a gente cresce, tendo que se desafiar todos os dias. Contudo, isso também tem um preço e pode atingir o seu emocional em longo prazo. Não direi que gostaria de passar por isso tudo novamente, porque nenhum profissional da saúde gostaria. Mas os aprendizados foram muitos. Um deles é que o trabalho em equipe é fundamental. A gente ver todo mundo trabalhando unido por uma causa, um pegando na mão do outro e ajudando quando necessário, não tem preço. Eu vi minha equipe trabalhar mais unida, independente de problemas pessoais, rusgas, birras ou qualquer outro problema. Então isso foi muito bacana, porque saber fazer gestão de pessoas no meio do caos é muito mais difícil. E, do ponto de vista pessoal, aprendi que o ser humano é muito pequeno, que humildade não faz mal para ninguém, pelo contrário. Às vezes, a gente acha que sabe de tudo porque estudou muito. Mas vem uma pandemia como essa para te balançar e mostrar que a vida é um grande mistério e não temos certeza de nada”, finaliza.