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O princípio do fim

Desmonte de políticas de direitos humanos vem sendo orquestrado desde impeachment

Para alguns, o alerta acendeu tarde, mais especificamente agora, depois do anúncio de que o governo pretende rever o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e de que há pretensões de acabar com a Comissão de Anistia. Para quem acompanha a pauta dos direitos humanos no Brasil, o desmonte já vem sendo articulado faz algum tempo. Quando cientistas políticos e outros analistas sociais alertavam em 2016 para os riscos que o processo de impeachment conduzido daquela forma traria para a democracia, muitos hesitaram em enxergar o que estava se desenhando: muito mais do que mera ruptura. Para os governistas à época, tramava-se um golpe, para os adversários, processo constitucional sempre arriscado. 

Convencionou-se chamar o episódio que destituiu Dilma Rousseff (PT) de golpe parlamentar, ou golpe branco, visto que não seria um processo de impeachment convencional nem um golpe de Estado com as condicionantes que o termo exigiria, mas com as características de “legalidade autoritária”. Não há mais dúvidas de que os instrumentos legais foram usados para destituir uma presidente democraticamente eleita e implementar políticas impopulares e um programa de governo jamais avalizado nas urnas. Estava ali, explícito, um objetivo comum: redução de direitos sociais. 

A questão é que aquela ambiência proporcionou um fenômeno mais perverso. Em 2018, um projeto político ainda mais tenebroso foi aprovado nas urnas, com respaldo da população, não de toda ela, mas da maioria. O país elegeu então uma proposta política prevendo coisas que, de tão absurdas, pareciam inacreditáveis. 

Desde o impeachment, a pauta dos diretos humanos parece ter sido soterrada pela “agenda anticorrupção”, como se fossem temáticas excludentes ou se uma pudesse prescindir da outra. Os primeiros assombros autoritários referentes aos direitos humanos ocorreram ainda no governo Michel Temer. Em 2016, Temer indicou o general Sérgio Westphalen Etchegoyen para assumir o cargo de ministro-chefe da Secretaria de Segurança Institucional. Tempos antes, Sérgio Etchegoyen havia publicado nota crítica e desrespeitosa em relação ao relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) – chamada por ele de leviana, covarde e perversa – por ter incluído o nome de seu pai, o general Leo Etchegoyen, na lista dos envolvidos com tortura na época da ditadura. Na ativa, não poderia fazer manifestações políticas.

Depois, o então ministro da Justiça – hoje ministro do STF – Alexandre de Moraes trocou 19 dos 25 integrantes da Comissão de Anistia. Apesar de parte dos comissários ter pedido para deixar o órgão, era tradição que a comissão discutisse e indicasse nomes. Outro legado deixado pelo governo Temer à Comissão de Anistia foi o fim dos pedidos oficiais de desculpa. Para além de reparação material, o colegiado tem o dever simbólico de garantir reconhecimento às vítimas de violações dos direitos humanos, mas, desde então, suspendeu a postura de oficialmente pedir perdão em nome do Estado. 

As eleições para a Presidência da República em 2018 já anunciavam o que estava por vir. A campanha de Jair Bolsonaro, além de defender a ampliação do porte de armas como estratégia de combate à violência, pregava ainda o “excludente de ilicitude”, espécie de salvo conduto para polícias em caso de mortes ocorridas durante operações.

Um dia após tomar posse, mais especificamente em 2 de janeiro de 2019, uma das medidas do governo Bolsonaro foi extinguir, por decreto, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), vinculada ao MEC. Tal secretaria gerenciava as pautas da interface educação e direitos humanos. 

Na sequência, Bolsonaro retirou a Comissão de Anistia da tutela do Ministério da Justiça e a transferiu para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Desde 2002, quando criada, todos os governos mantiveram a comissão atrelada à pasta da Justiça, considerando sua importância para o processo de justiça de transição brasileiro. O governo atual, contudo, sempre desejou diminuir sua relevância, promovendo com frequência cancelamentos de anistias concedidas em gestões anteriores.

Levantamentos jornalísticos com base nos dados da Comissão da Anistia demonstram que ela tem indeferido cerca de 90% dos pedidos julgados. No governo Temer não foi muito diferente, quando havia apenas 13% de deferimentos, conforme noticiado. Além disso, os militares ganharam mais cargos na comissão. A ministra Damares Alves tem sido a incumbida de efetivar as principais medidas do desmonte.

A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), criada em 1995, foi outra que perdeu espaço na atual gestão. Também migrou de ministério, teve parte de suas atribuições reduzida e vem sofrendo frequentes ingerências. Após reconhecer que Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz – considerado um desafeto por Bolsonaro –, morreu como perseguido político no período da ditadura, a CEMDP passou por substituição de integrantes.  

Paralelamente às medidas oficiais, a cada ano precisamos conviver com a falta de noção dos que comemoram o golpe de 1964. Sim, no Brasil há quem julgue que golpes de Estado são dignos de comemoração. Precisamos conviver ainda com homenagens a torturadores, manifestações pró-intervenção militar e gestos autoritários de toda ordem.

Em plena crise de saúde, econômica e política, ocasionada após um ano de pandemia da Covid-19, o governo não tirou de mira a vontade de implodir as políticas de direitos humanos. Publicou portaria para criar grupo de trabalho com intuito de rever o PNDH-3. Não haveria problema, não fosse o caráter autoritário e inconstitucional da medida. O atual programa de direitos humanos foi o mais aclamado e democrático dentre os três já produzidos. Fruto de amplo debate com a sociedade civil, representou conquista do povo brasileiro. Todavia, o anúncio truculento de sua revisão e os objetivos que a motivam são de espantar. 

Como se não bastasse, eis que a implicância com a comissão de anistia persiste. Surge agora a informação de que o objetivo é extingui-la no ano que vem. Parece novela, parece pesadelo e parece até mentira. Mas é a mais dura realidade que acomete cotidianamente o país.