Era o pré-carnaval de 2017 quando conheci o Ingoma. Meu primeiro carnaval de rua, diga-se de passagem. De lá para cá, tentei aproveitar toda e qualquer oportunidade de ver o grupo na rua. Infelizmente, em março de 2020 tivemos nosso último encontro – até então. Desde que a pandemia da Covid-19 se espalhou pelo mundo, a vida tem ficado um pouco mais quieta, sem a possibilidade de encontro com a rua, com a cidade, com o outro. Shows, eventos, apresentações culturais, tudo ficou suspenso, até que seja novamente seguro.
Após um ano e meio de atividades paralisadas, o grupo voltou aos palcos nesta semana, com o Festival do Ingoma, entre os dias 23 e 27 de junho. Em formato remoto, com transmissão ao vivo através de plataformas virtuais, o Ingoma volta a tocar seus tambores e promover encontros – agora entre telas. Na programação, o festival traz oficinas, mostras de congado e tambor mineiro, contação de histórias tradicionais e, no encerramento, show do grupo Ingoma. As atividades são gratuitas e as apresentações são transmitidas todas às noites de festival, a partir das 20h30, no canal do Youtube, no Facebook e Instagram do Ingoma.
Em entrevista a O Pharol, o coordenador do Ingoma, Lucas Soares, conta que a ideia do festival já vinha sendo gestada mesmo antes da pandemia. Os planos, entretanto, tiveram de ser adiados (inclusive o de lançamento de um single, mas isso fica para outra pauta). Com o apoio da Lei Aldir Blanc de Incentivo à Cultura, o grupo teve seu projeto financiado e agora realiza o Festival do Ingoma, numa tentativa de refrescar os ânimos e trazer um fôlego extra. “O festival vem na vontade, a gente sabe que de uma forma muito paliativa ainda, de tentar encurtar essa distância com o público e com os nossos alunos”, comenta.
Uma arte coletiva
Para aqueles (como eu) que acompanham o Ingoma na rua, mas não conhecem a fundo sua história e essência, o festival é também uma oportunidade para aprender sobre as raízes da música popular brasileira. Na live de abertura, na noite da quarta-feira, 23, a cantora Titane conversou com membros do Ingoma sobre a música tradicional e suas diversas representações, especialmente em Minas Gerais.
Em sua participação no festival, a cantora lembrou que muitas expressões musicais vieram de um lugar tradicional, ancestral. A artista ressalta o caráter coletivo da música que, como ela mesma explica, não é minha, sua, ou dela, mas de um movimento conjunto. Em seu trabalho, ao trazer as referências e inspirações dos congados, tenta fazê-lo de forma cuidadosa, respeitando as origens e tradições, mas sem deixar de valorizar os arranjos e tambores tradicionais da música mineira.
Por isso é importante conhecer as raízes e dar sentido a estas práticas que, por si só, já são ricas de significados. “Para surgir a música dentro da gente, para surgir uma linguagem musical que uma geração toda vai desenvolver, para acrescentar coisas novas dentro da nossa música, para que tudo isso aconteça, não basta um artista talentoso. Isso é construção de uma cultura inteira”, completa Titane, em entrevista a O Pharol.
O próprio Ingoma também trabalha no sentido de valorizar, reverenciar e fortalecer as culturas tradicionais mineiras, que inspiram as práticas musicais do grupo, e são o tema central de suas pesquisas e experimentações. “O Ingoma é um grupo artístico. Todo artista se inspira em movimentos, em várias coisas. E na música que o Ingoma faz, que é uma música extremamente popular, ela traz muito no meio dela a música dos movimentos tradicionais”, explica Lucas, que destaca também a importância da pesquisa junto às comunidades para um trabalho sério e cuidadoso. “A gente faz arte, a nossa própria arte. Mas por ser uma arte que bebe nas culturas populares, a gente entende que é preciso ter fundamento, é preciso ter consciência do que está fazendo”. Grande parte dessa pesquisa é formada pelo contato com outros grupos de congadas, nas visitas e vivências coletivas junto às suas comunidades. “É muito importante a gente ver que o que a gente faz fortalece o que eles fazem e o que eles acreditam. E é muito importante, como no próprio festival, ter artistas que já fazem isso há tanto tempo pertinho da gente também – que também já misturam e fazem isso com extremo respeito e cuidado”, completa.
Por todos os cantos
Com a paralisação das atividades, o Ingoma suspendeu suas oficinas de tambor mineiro, encontros do grupo, apresentações, e também as pesquisas junto às comunidades tradicionais. Para Lucas Soares, esse é um dos aspectos mais difíceis durante este período de quarentena: a impossibilidade de encontro, tanto com os alunos, mas também com o público nas ruas e shows, e também com os parceiros de tambor.
O festival se apresenta, assim, como uma forma de união, mesmo que de forma remota. Um exemplo é a mostra Por Todos os Cantos, realizada na noite de quinta-feira, 24, que reuniu a apresentação de grupos de tambores de diferentes regiões de Minas Gerais: Maurício Tizumba e Tambor Mineiro, de Belo Horizonte; Congador, de Sete Lagoas; Meninos de Minas, de Ipatinga; Valentinas, de Timóteo; e até mesmo o grupo Tilelê, em Zurique, na Suíça.
Como possibilidade do formato remoto, além dos vídeos com apresentações, o público pode acompanhar ainda entrevistas com os representantes de cada grupo, gravadas previamente. Uma conversa breve, em que os convidados contaram as origens de seus trabalhos, suas inspirações e projetos futuros. Nas palavras de Lucas, essa é uma oportunidade de o grupo se reunir com artistas que são parceiros e também referências para o Ingoma. “Em termos de programação, a gente se sente extremamente contemplados com a possibilidade de ter oficinas com pessoas incríveis, a possibilidade de a gente reunir artistas que são grandes referências para o nosso trabalho, como o Sérgio Pererê, o Maurício Tizumba e a Titane; e grupos artísticos que trabalham com desdobramentos mais ou menos na linha do recorte estético que o Ingoma também trabalha, e que a gente já acompanha e admira de longe”, conta.
Para Alyne Emanuelle Silva, a fundadora do grupo Tilelê, de Zurique, na Suíça, participar do Festival do Ingoma neste formato virtual foi uma oportunidade também para que o público do país pudesse conhecer mais sobre a música brasileira. “Foi muito importante e especial. É um portal para as pessoas da Suíça poderem conhecer os outros grupos em Minas. É muito interessante as pessoas da Suíça terem o acesso a outros trabalhos”, comenta. E destaca também a oportunidade de, mesmo à distância, se reunir e se conectar com outros grupos de tambor mineiro que ainda não conhecia pessoalmente. “É uma satisfação enorme a gente poder estar participando da programação, estar dentro da programação entre tantos outros mestres, professores, enfim, tantos grupos que já têm muitos anos de estrada. E nós somos bem iniciantes, só temos três anos de estrada. Um grupo bem menor, comparado aos outros que estão participando. Então é uma alegria mesmo, uma satisfação enorme poder fazer parte, e também estar representando que tem um tambor mineiro aqui na Suíça”, conta Alyne, em entrevista para O Pharol. Se me permitem um clichê, apesar do distanciamento, não estamos socialmente isolados – muito pelo contrário.
Arte, pesquisa e tradição
Uma das formas de atuação do Ingoma é também com a pesquisa sobre as matrizes tradicionais de Minas Gerais, principalmente com a participação em festas e eventos das comunidades. “Ao longo desses 14 anos de grupo, a gente tem uma rede de comunidades tradicionais e festas tradicionais de Minas Gerais que a gente já acompanha há muitos anos, e que acompanham o nosso trabalho”, explica Lucas.
Dois desses grupos participam também do Festival, com a transmissão de suas apresentações já previamente gravadas: a Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande, na sexta-feira, 25; e a Congada e Moçambique de Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia, de Ouro Preto, no sábado, 26 de junho.
O coordenador do Ingoma conta que a relação com os grupos começou a partir de uma visita, depois convites para participação em festas e eventos das congadas, e então a criação de um vínculo de amizade e respeito, que vem sendo reforçado com o passar do tempo. “As pesquisas acontecem de diversas formas, mas estar junto, estar na festa deles, no corpo a corpo, expondo o que a gente quer fazer para eles, ouvindo, aprendendo o tempo inteiro, acho que essa é a forma mais fundamental”, comenta Lucas Soares.
E mesmo na pandemia, com a impossibilidade dos encontros presenciais, esse vínculo foi mantido. Posteriormente, os grupos participaram da gravação das apresentações para o Festival do Ingoma. “Então, um contato que era mantido virtualmente, porque na medida em que os anos passam e que a gente vai mantendo essas visitas e essas homenagens e esse contato, eles vão se tornando amigos mesmo, e a gente pode também, no festival, com uma equipe muito pequenininha, romper isso, ir até a comunidade, garantir a segurança de todo mundo que estava participando e fazer essa filmagem”, conta Lucas.
Para ele, a participação dos grupos no festival é de grande importância, e representa a relação que construíram ao longo dos anos. “Eles estão perto da gente o tempo inteiro, e isso é muito importante para a gente”, ressalta.
Segue folia
Além das mostras, o festival também traz contação de histórias e oficinas para educação musical, logo antes do início da programação ao vivo. Na sexta-feira, 25, o grupo Nzinga, de Juiz de Fora, abriu as apresentações da noite com histórias da tradição afro-brasileira. E no sábado, 26, a Cia. Rabisco Brincante, de Ouro Preto, narra a história de Chico Rei, importante personagem da cultura oral.
Lucas Soares, coordenador do Ingoma, chama atenção também para o sucesso das oficinas oferecidas, que tiveram suas vagas esgotadas em menos de uma hora após a abertura das inscrições. “Essa parte das oficinas, do compartilhamento de conhecimento, de informações, e do ensino musical, que está ali incluído, sempre foi muito importante para o Ingoma. O Ingoma se constrói em cima dessa premissa. E isso não podia faltar no nosso festival. A gente ficou muito feliz com essa procura enorme. A gente não esperava a velocidade que foi. Mas ao mesmo tempo, fica uma pontinha triste, porque a nossa vontade era de conseguir receber todo mundo”, resume.
Ainda durante a programação do festival, é possível participar também do Cortejo Solidário, uma iniciativa do Ingoma, junto ao coletivo 8M e ao grupo Mãos que Ajudam, para a arrecadação de contribuições que serão revertidas à assistência de famílias em situação de vulnerabilidade social. As informações para doações estão disponíveis na página do Ingoma.
O Festival do Ingoma segue neste fim de semana, a partir das 20h30. No sábado, com a apresentação da Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia, de Ouro Preto. E no encerramento, domingo, o grupo Ingoma faz um show especial, com participação de Maurício Tizumba e Sérgio Pererê. Para Lucas, além de respiro e alento, o festival é também um impulso. “porque é uma forma de a gente ver que tem muita gente resistindo e fazendo coisas belas, fazendo coisas fortes, e que a gente precisa estar junto e pegar esse impulso para conseguir seguir firmes e juntos nessa caminhada que a gente ainda vai ter pela frente, para tentar modificar um pouco esse quadro grotesco que se configurou no nosso país”, finaliza.