Na seção “Tendências/Debates” do jornal Folha de São Paulo no último sábado, dia 19/06, o filósofo Renato Janine Ribeiro e o jornalista Eugênio Bucci publicaram artigos debatendo a seguinte questão: “A Folha cobre corretamente o governo Bolsonaro?”. Enquanto Janine Ribeiro respondeu negativamente, destacando que o jornal foi muito mais engajado e contundente em outros momentos recentes da história republicana, como o fim da ditadura e o impeachment de Collor, Bucci argumentou que, apesar dos limites, a Folha tem realizado uma cobertura corajosa, destacando, para tanto, reportagens investigativas que expuseram problemas do atual governo, bem como os editoriais críticos e a pluralidade de articulistas, que fazem oposição aberta aos discursos e às agendas bolsonaristas.
A questão proposta pela Folha poderia ser estendida para toda a imprensa brasileira. Afinal, cobrir o governo Bolsonaro é, sem a menor sombra de dúvidas, o maior desafio colocado para os jornais do país desde a redemocratização. Ainda que tensões entre governantes e imprensa sejam lugar comum em qualquer regime democrático, governos autoritários como os de Bolsonaro, no Brasil, de Trump, nos Estados Unidos e de Orbán, na Hungria levam essas crises para outro patamar, na medida em que fazem dos conflitos com os jornais mais tradicionais elementos estruturais de seus mandatos. Os órgãos da chamada “grande imprensa” – assim como outras instituições a exemplo dos partidos políticos, o parlamento, o STF e as universidades – são encarados, a partir de uma lógica conspiracionista, como se pertencessem todos a um sistema que deve ser destruído para que os interesses autênticos da sociedade possam efetivamente se manifestar.
No caso do governo Bolsonaro, os desafios colocados para a imprensa são, sobretudo, de duas ordens: a intimidação permanente e a disseminação explícita de “fake news” por parte do presidente. No que concerne ao primeiro aspecto, têm sido cada vez mais frequentes as manifestações abertas de violência de Bolsonaro contra jornalistas e órgãos da imprensa, a exemplo daquela que ocorreu na última segunda-feira, 22/06, em Guaratinguetá, quando questionado sobre o não uso da máscara, o presidente ofendeu a repórter Laurene Santos e atacou as redes CNN e Globo. Para além dos óbvios riscos envolvidos para a democracia neste tipo de ação, o comportamento do presidente contribui para legitimar a violência de apoiadores nas “pontas” do país, a exemplo do que ocorreu em Olímpia (SP), cuja sede do jornal Folha da Região foi atacada pelo fato de seu editor defender medidas de isolamento social.
Já em relação à disseminação de Fake News, Bolsonaro coloca outro desafio enorme para a imprensa: como cobrir um presidente que mente tão descaradamente todos os dias, sem qualquer tipo de constrangimento? Se, por um lado, não se pode deixar de acompanhar e dar destaque às falas da principal autoridade pública do país, de outro, esta mesma cobertura acaba por conferir maior visibilidade a esta sequência de declarações absurdas. Trata-sede um paradoxo de difícil resolução entre a imperativa necessidade de informar a população e a consequente publicização de pronunciamentos mentirosos e irresponsáveis.
Os principais jornais do país contribuíram decisivamente para a “normalização” de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018, cobrindo-o como um candidato comum e minimizando seus riscos para a democracia.
E, talvez, o maior problema decorrente desse paradoxo advenha do fato de que, ao proferir essas frases absurdas, Bolsonaro consegue “pautar” a imprensa, determinando quais temas e assuntos ganharão maior visibilidade. Exemplo: no mesmo dia em que a imprensa divulgou um documento mostrando que o atual presidente intercedeu diretamente junto à Índia pata solicitar o envio de insumos para a produção da hidroxicloroquina – contrastando com a inação para a compra de vacinas –, Bolsonaro fez a declaração de que discutiu com o Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, sobre a não obrigação do uso de máscaras para quem já tivesse se vacinado ou contraído a Covid. Com essa fala, o presidente conseguiu desviar o foco de uma questão que o atingia diretamente, pautando as discussões nos jornais no dia seguinte em torno de um tema absurdo.
Não se trata de idealizar a “grande imprensa”, encarando-a apenas como “vítima”. Os principais jornais do país contribuíram decisivamente para a “normalização” de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018, cobrindo-o como um candidato comum e minimizando seus riscos para a democracia. Fizeram isso, por um lado, tratando como mero detalhe sua história pregressa de declarações em defesa da ditadura de 1964, suas afirmações ofensivas em relação às mulheres, negros e setores LGBT, suas falas em defesa do fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso e do que ele chamou de “petralhada”.
De outro lado, muitos jornais foram decisivos para a construção do discurso da “falsa equivalência entre os dois lados”, como se o Partido dos Trabalhadores (PT) – que governou o país durante quatorze anos sem qualquer ataque explícito às instituições e à Constituição de 1988 – fosse exatamente a mesma coisa que Bolsonaro, que defendia abertamente pautas antidemocráticas. Por mais críticas que possa se fazer ao PT, colocá-los como equivalentes – como parte expressiva da imprensa fez e alguns jornais ainda continuam fazendo, como é o caso do O Estado de São Paulo – é um erro analítico e político de enorme magnitude, que contribui decisivamente para este processo de “normalização” de Bolsonaro.
Alguns sinais, felizmente, indicam movimentos de mudança em parte de setores da imprensa. O editorial do Jornal Nacional no último sábado (19/06) – quando o Brasil atingiu a trágica marca de 500.000 mortos pela pandemia –, que afirma que “não há dois lados” “quando estão em perigo coisas tão importantes como o direito à saúde (…) ou o direito de viver numa democracia” é um passo importante nessa direção. Além disso, a própria cobertura mais destacada das manifestações que tomaram as ruas do país no dia 19/06, contrastando com o quase silêncio após os protestos do dia 29/05, é também um indício de que, pouco a pouco, algo tem mudado na forma como a imprensa brasileira tem percebido seu lugar no atual cenário.
A conjuntura política brasileira deverá se acirrar e se tornar mais tensa nos próximos meses, à medida que a CPI da Covid avance em seus trabalhos, que as manifestações contrárias ao governo se ampliem e, sobretudo, que as eleições presidenciais de 2022 se aproximem. Espera-se que, neste cenário turbulento, a grande imprensa continue no caminho sinalizado ao longo das últimas semanas, de contraposição às ações e discursos autoritários do governo e de não normalização do que não deve ser normalizado. Afinal, na quadra histórica pela qual passamos, os riscos não são somente para os meios de comunicação, mas para a própria democracia.