Polytheama

Lembra da camponesa na lata de Leite Moça? Pois é, ela saiu de lá

(Arte gráfica: Camila Matheus)

Não adianta chorar sobre o leite derramado. Mais do que um jargão popular, o termo é apropriado para falar dos 100 anos do Leite Moça no Brasil. Desde a primeira fábrica no interior de São Paulo, em 1921, até os dias de hoje, o brigadeiro só existe por conta dessa moça que desembarcou nos trópicos há um século. Ficamos mais felizes. E mais gordos também. O pudim, que era apenas de leite, passou a ser de leite condensado. Para entender a força deste produto na cultura brasileira é preciso compreender a evolução dos doces também, assim como os fatores socioeconômicos que vieram na fatura desta moça centenária.

A Nestlé reescreveu os doces brasileiros. Quando o Leite Moça já não podia ser oferecido aos bebês, a corporação suíça se adaptou rapidamente. Beijinho, pudim, papo de anjo: todas as receitas tradicionais foram adaptadas para fazer do Brasil um alvo preferencial da empresa.

Neste contexto, é impossível fugir do leite condensado. Quando chegou ao Brasil trouxe com ele uma gama de receitas criadas pela empresa para “facilitar” a vida. Afinal, eram poucas as donas de casa que sabiam o ponto certo do pudim. E demorava dias para fazer.

A chegada do Leite Moça também trouxe um novo ingrediente a esta relação: sai o caderno manuscrito e entra o rótulo da lata com a receita. Dos cadernos de receitas às receitas de latinha reconstitui uma história da alimentação que se mescla com a história da urbanização no Brasil, quando os eletrodomésticos e produtos industrializados são incorporados à cozinha, modificando receitas e reconfigurando hábitos.

Primeira propaganda do Leite Moça em veículo impresso (Fonte: Reprodução)

É aí que entram os cadernos de receita, que se popularizaram com a alfabetização feminina em meados do século XIX. Desde as damas da corte portuguesa no século XVII às donas de casa inglesas do século XVIII.

Ícones, como o quindim, o bolo de fubá e o arroz-doce protagonizam as narrativas nas latas. Em vez da tigela e da espátula, uma batedeira elétrica. No lugar do fogão a lenha, o forno a gás. O ato de cozinhar continua bem aceito, até e principalmente por mulheres estudadas, as de classe média ainda se davam ao luxo de o fazer em cozinhas cujos projetos arquitetônicos valorizam a integração às áreas de estar. Antes, um espaço relegado a segundo plano. A cozinha equipada com eletrodomésticos variados reduzia o tempo de trabalho e refletia o avanço dos tempos modernos.

Para o sociólogo Gilberto Freyre, foi o açúcar o responsável pela junção de culturas e culinárias no Brasil, ainda que o ciclo da cana-de-açúcar tenha sido marcado pela escravidão. Falar de açúcar é falar de poder: produzido desde o século XVI, foi uma das especiarias mais caras do mundo. A história nos mostrou que a doçaria brasileira, assim como a culinária em geral, sofreu muita influência da colonização portuguesa, que tem sobremesas à base de ovos e açúcar. Dos povos escravizados, veio o uso do coco e de alimentos que encontramos aqui, como a mandioca.

Primeira rede social entre as ‘belas, recatadas e do lar’

Pão da avó Maria, torta da Tia Fatinha, bolo da dona Neném. No caderno de receita dos anos 1950, a mãe deixava escrito o que a filha tinha que fazer para ser uma dona de casa exemplar. A conduta da bela, recatada e do lar. “Você vai cozinhar tão bem quanto a mãe dele”. Já pensou o que era ouvir uma coisa dessas?

Hoje nos causa espanto, mas houve um tempo que a amamentação muitas vezes foi trocada pelo Leite Moça (Fonte: Reprodução)

Mas tudo estava prestes a mudar. Na passagem da década de 50 para 60, no âmbito da candidatura de Jânio Quadros e da visita de Fidel Castro, havia uma enorme projeção nas vendas de leite condensado o Brasil. A Nestlé investiu pesado para ampliar a sua relação com o país. E precisava ser mais do que distribuir cadernos de receitas às donas de casa. Naquele momento, a mortalidade infantil era um problema sério, em muitos casos pela falta do aleitamento materno. Hoje nos causa espanto saber que a amamentação muitas vezes foi trocada pelo Leite Moça naqueles tempos.

Nem 10% das receitas de doces levavam Leite Moça até os anos 1960. Hoje, 70% da doçaria, segundo a própria marca, são feitos com o produto. Qualquer receita que você jogar no Google vai ver que ao menos as três primeiras trazem a Moça na receita.

Nessa cozinha de Sinhá, de doces finos e delicados, resquícios dos doces de freiras, quem é esta Moça da lata? Os livros de receitas, cada vez mais bonitos, precisavam instigar com histórias de mulheres que, por exemplo, perderam o namorado por não conseguir o ponto certo no doce predileto dele.

Outra tacada de mestre foi estimular o uso da lata como medida. Não era mais uma xícara disso ou daquilo, mas uma lata, cujo leite condensado fora despejado antes.

Nos anos 1980, havia cartas de mulheres do Brasil inteiro trocando receitas. A Nestlé estimulava o intercâmbio e divulgava as receitas, o que passou a ser a principal ferramenta de publicidade da marca. A primeira rede social entre as donas de casa.

No cenário político atual, a denúncia de que o governo do presidente Jair Bolsonaro (Sem Partido) gastou R$ 15.641.777,49 em leite condensado fez com que explodissem nas redes diversos memes sobre o assunto. Mas isto é outro assunto… Em resumo, comida é poder. Pode ser opressão ou resistência.

Uma relação de amor com Juiz de Fora

Até metade do século XX, a doçaria se mantinha no âmbito doméstico, quando os imigrantes europeus abriram as primeiras confeitarias. No Brasil houve uma divisão: uma confeitaria doméstica, a comida da fazenda, e uma social, mais recente. “Para comer com os olhos”, como diz a empresária Flávia Gerheim, herdeira do clã Vó Sinhá, uma grife juiz-forana quando se fala em tortas e outras sobremesas.

“A grande maioria dos nossos doces leva leite condensado, tirando poucos preparos como a torta de nozes, o tiramissu e a de abacaxi. Do nosso carro-chefe, o pavê de amêndoas (que tem 30 anos), às clássicas tortas de coco, tentação de morango e brigadeiro”, comenta Flávia. “Faz mais de duas décadas, e a gente resolveu sair das fatias e servir por quilo, para que os comensais possam degustar uma maior variedade, um pot-pourri das nossas sobremesas, dispostas tanto na vitrine como no bufê.”

Há 40 anos, a Vó Sinhá arranca suspiros. Surgiu como casa de chá, na Galeria Epaminondas Braga, Centro, pelas mãos da patrona Vó Sinhá (de Guarani), junto com a filha e a neta, Flávia. Hoje, ocupa uma loja na Braz Bernardino, onde funciona como restaurante, confeitaria (os folheados!) e padaria (agora com pães de fermentação natural).

As receitas são todas autorais e, conforme Flávia, vêm sofrendo adaptações. “É preciso acompanhar a evolução da confeitaria, cada vez mais exigindo doces mais bonitos e com dulçor balanceado.” Diariamente, são oferecidas cerca de 25 opções de sobremesas, a partir de R$ 70 (o quilo).

As moças da lata

Pela primeira vez em 100 anos, o Leite Moça retirou a icônica camponesa magérrima do rótulo para dar espaço a personagens reais e à diversidade. Sete mulheres brasileiras e suas histórias: Dona Sônia, Bia, Gabriela, Angela, Tia Bena e ainda a mãe Terezinha com a filha Amanda. A edição especial das latas tem ilustração de Débora Islas e pesquisa da jornalista Adriana Terra.

“São histórias de transformação e crescimento pessoal conquistados usando a marca como aliada na culinária e na confeitaria. Assim, homenageamos a Moça e as moças que fazem parte da sua trajetória”, comenta Renata d’Ávila, CSO da FCB Brasil.

Quando se viu desempregada, com duas filhas pequenas e o marido na mesma situação, Verbênia decidiu apostar em seus talentos como confeiteira. A assessora de imprensa Gabriela desenvolveu uma terapia particular para enfrentar uma perda: fazer pudim de leite. Aos 60 anos, Dona Sônia, de Raul Soares (MG), virou empreendedora com a receita da palha italiana. Neta de duas avós que cozinhavam muito bem, Bia levou este talento adiante e foi estudar gastronomia. A história dessas e outras brasileiras você encontra nas novas latas e redes sociais da marca.

“Quando eu era criança, o leite era muito caro. Então, minha mãe fazia dois furinhos na lata de Leite Moça e diluía com café para a gente tomar”. Foi assim que o leite condensado começou a fazer parte da vida de Angela, que vive no Rio de Janeiro e, há 15 anos, administra um grupo com 207.300 fãs de Leite Moça, dedicado exclusivamente à troca de receitas com esse ingrediente. Angela também estampa uma das latas.

Frente e verso, mãe e filha. Há 15 anos, Tereza e Amanda vivem uma parceria doce e amorosa. Na gravidez, Terezinha preparava pavês para completar a renda de cabeleireira. Pouco mais de uma década depois, a segunda profissão virou a oficial, e ela recebeu um reforço especial na cozinha, o de Amanda. Foi nos tutoriais online que ela aprendeu técnicas de confeitaria para os doces feitos com Leite Moça da mãe. Hoje a história delas faz sucesso no Rio e também está numa das latas novas.

Para Keila Broedel, gerente de Marketing das marcas Moça e Nestlé Creme de Leite, o produto tem uma relação de intimidade com as mulheres brasileiras.

“Trazer as consumidoras para a lata é uma forma de homenagear, reafirmar o valor e a importância que todas essas mulheres têm para a marca, fortalecendo ainda mais o vínculo marca-consumidora.”

O leite condensado Milkmaid chegou ao Brasil em 1890, com este nome gringo mesmo, ao qual as pessoas chamavam: o leite da moça. Por aqui ganhou o nome Leite Moça em 1921, quando a Nestlé abriu sua primeira fábrica no país. O nome foi dado espontaneamente pelas consumidoras, inspirado na camponesa que ilustra as latas desde a sua primeira versão. O mais curioso: ele começou a ser vendido numa drogaria, em São Paulo.

Um século depois, o Brasil é o maior consumidor de leite condensado do mundo. De acordo com dados da própria empresa divulgados em 2020, são sete latas de Leite Moça por segundo, o que dá 220 milhões de latas por ano. É mais ou menos uma lata por brasileiro. Isso sem contabilizar as outras marcas. Em nenhum outro lugar você vai encontrar uma relação igual. A história de amor entre uma lata e um país, como os doces brasileiros foram transformados pelo resto da suas vidas. Um casamento de conveniência e interesses. Além de verdades indigestas.