Polytheama

Simone Biles e a coragem de desistir. Por que devemos refletir sobre isso?

Simone Biles, favorita a recordes nessa edição dos jogos, trouxe à tona a temática da saúde mental. (Foto: Abelardo Mendes Jr/ rededoesporte.gov.br)

As Olimpíadas de Tóquio, alcunhada como jogos da diversidade, trouxe, para o social, algo que escapa às arenas e às linhas que delimitam o campo de competição. Pela decisão de seguir competindo por equipes e abrir mão de provas individuais, Simone Biles, uma das estrelas e favorita a recordes nessa edição dos jogos, trouxe à tona uma temática que efervesceu durante os jogos e segue borbulhando: a saúde mental.

Ainda se sabe pouco sobre a situação da atleta, que deu breves declarações durante os jogos, por isso não se trata de fazer um diagnóstico ou patologizar um comportamento natural – ou pelo menos deveria ser – se tratando da recusa de uma prova em um esporte de alto risco físico. Por um centímetro, ou o “centímetro para a glória”, como tatuou o atacante chileno Mauricio Pinilla, descrevendo a bola no travessão que classificaria o Chile para as quartas de final contra o Brasil na Copa do Mundo de 2014. Por essa aparente mínima medida, o pé de Riley McCusker escapou em sua desmontagem na trave na American Cup em 2017, caindo sobre o pescoço, em um alto risco de lesão e de vida.

Márcia Fu Olimpíadas
Márcia Fu: “Vivemos sob pressão o tempo todo. A expectativa sobre o que esperam de nós, de defender um país.” (Foto: Twin Alvarenga/UFJF)

Movimentos na ginástica batizados com o nome da atleta evidenciam ainda mais a excepcionalidade de Biles. Devido ao desempenho e resultados, Biles fora considerada em sua modalidade esportiva como GOAT (sigla em inglês que significa “melhor de todos os tempos”). A própria ginasta abraça o epíteto e passa a competir com o desenho de uma cabra (goat em inglês) de strass em seu collant. “A pressão sempre existiu e faz parte do esporte, o atleta de alto rendimento treina para competir sob essas condições. Nossa admiração está quando o atleta controla algo incontrolável. Esporte é isso, se divertir sob pressão”, salienta o professor da Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de Juiz de Fora e especialista em psicologia do esporte, Renato Miranda.

Estar numa Olimpíadas, entre um seleto grupo de atletas, mesmo diante de tantas adversidades, é o sonho de grande parte dos esportistas. O clima olímpico, a pressão dentro do ginásio, a expectativa dos torcedores, tudo isso faz parte da atmosfera do esporte. Quem já esteve lá sabe como é. Quem o diga é Márcia Fu, ex-jogadora de vôlei e medalhista olímpica pelo Brasil nos Jogos de Atlanta em 1996. “Vivemos sob pressão o tempo todo. A expectativa sobre o que esperam de nós, de defender um país. Eu focava no meu bem-estar e no bem-estar do grupo. A forma de me manter mentalmente tranquila se baseava em duas frentes: treinamento e preparação. Eu estava treinada e me preparei antes. Os atletas de alto nível quando se preparam, conseguem manter a pressão”, relata.

Porém, para alguns olímpicos, no patamar do Olimpo dos Deuses gregos, como o caso de Biles, o peso da expectativa pode ser debilitante. Em uma de suas declarações durante os Jogos de Tóquio, a ginasta disse que “tem sido um longo ano e eu acho que estamos muito estressados. Deveríamos estar aqui nos divertindo”, traz a ESPN. Não se sentindo em seu status de GOAT, Biles dá um passo atrás e, com sua voz, chama a atenção para o aspecto humano. “Também temos que nos concentrar em nós mesmos, porque no final do dia também somos humanos.” E continua. “Então, temos que proteger nossa mente e nosso corpo, ao invés de apenas sair e fazer o que o mundo quer que façamos”, traz a CNN.

“Nos Estados Unidos ou na Alemanha, por exemplo, quando um atleta diz não estar saudável, não está atrelado diretamente à uma patologia ou um transtorno, mas isso inclui a falta de confiança, o medo de errar e a insegurança, principalmente se tratando de um esporte de alto risco de lesão como a ginástica olímpica. Portanto, a decisão de Biles está dentro de um grau de normalidade”, observa Renato Miranda. No entanto, o pesquisador não descarta a hipótese de problemas externos ao meio esportivo, “da pessoa Biles”, que podem acarretar em algum dano à saúde mental do atleta.

O desistir na contramão do neoliberalismo

Mesmo com protocolos de segurança e bolhas isoladas para proteger os atletas e delegações do risco de contaminação, é eminente a situação pandêmica vivenciada no mundo. Além de uma questão sanitária, a pandemia mobiliza mudanças sociais, econômicas e psíquicas. Atletas, ainda que de alto rendimento, não estão alheios a isso. Pelo contrário, a cobrança e exigência de um desempenho impecável por torcedores, imprensa e especialistas muitas vezes ignoram fatores externos ao campo de competição.

Ademais, vive-se em um contexto de alta performance, num modo de produção neoliberal. Neoliberalismo, nesse caso, visto não apenas como sistema econômico, mas como condição subjetivante para tentar verter os modos de ação, caracterizada pela profunda individualização dos interesses. Em “A Nova Razão do Mundo”, os pensadores franceses Pierre Dardot e Christian Laval ensaiam uma síntese do novo sujeito: afeito para a competição e o desempenho, empreendedor de si – feito para ganhar, para ser bem-sucedido – em que “os resultados obtidos na vida são fruto de uma série de decisões e esforços que dependem apenas do indivíduo e não implicam nenhuma compensação em caso de fracasso, exceto as previstas nos contratos de seguro privado facultativo.”

Este modelo de produção individualista tem nas redes sociais uma grande plataforma de demonstração do ego. Para a psicóloga Késia Rodrigues, as redes sociais refletem de forma direta o modelo de produtividade e competitividade que estão todos inseridos. “Na era digital, as mensagens são transmitidas em tempo real e ininterruptamente, porém esquecemos que ainda assim é virtual. Grande parte do que é transmitido é virtual. Perdemos parte da veracidade e da integridade dos fatos, porém consumimos como se tudo apresentado ali fosse real. Nisso, se inclui a performance produtiva e de sucesso que muitos vendem”.

“Em tempos de cancelamento, há também uma pressão a esse ideal de que a vida não tem espaço para o erro, para o desencontro, para o não querer, para a derrota ou o não alcance do lugar mais alto do pódio”, destaca a psicóloga Naiara Santos e Silva. Diante do cenário em que as cobranças virtuais parecem direcionadas a deuses, e não a humanos passíveis de erro com uma vida fora do trabalho, Biles é sucinta ao afirmar: “As pessoas não têm ideia do que está acontecendo nos bastidores e apenas nos julgam pelas nossas redes sociais.”

Para esse novo sujeito, o verbo desistir está fora do vocabulário. O desistir de Simone Biles, mesmo diante das possibilidades esportivas como o risco de uma lesão, ainda assim é um gesto simbólico. “Considero a recusa de Simone Biles uma provocação para nos dizer: não está tudo bem e precisamos sair desse discurso”, diz a psicóloga Késia Rodrigues.

Todas as previsões colocavam Simone Biles como o nome dos jogos. Não foi diferente. A ginasta trouxe para o debate uma temática importantíssima no cenário atual. Se se espera sempre atitudes heroicas de grandes atletas, no fim das contas, com seu belíssimo ato de coragem, foi isso que Biles nos deu.