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A invasão e a coisa pública

Falar do público e do privado não é novidade, ainda mais num Brasil de trocadilho fácil: o público virou privada. Culpa do patrimonialismo, conceito que o Max Weber cunhou bem e que dá pra resumir fácil: confusão entre o público e o privado. Simples assim. É meio que uma interpretação literal do “só me interessa o que não é meu”, que acaba sendo.

Quando o Cabral chegou aqui, ele invadiu. Livro velho fala em descobrir, livro de eufemismo estrutural fala em colonizar, mas ele invadiu. Não deu chance de o indígena despir o português: o indígena ganhou espelhinho, roupa e Covid no mesmo pacote. Tava quieto no canto dele comendo mandioca e balançando na rede quando veio o chefe, chamou de preguiçoso, engravidou as mulheres e disse que esse negócio de marco temporal tem que ser assim e pronto, sem negociação.

A fase seguinte da invasão veio com a tecnologia digital ligada na internet. Se você fez e não colocou na internet… cara, cê não fez. Tem que tá lá: seu almoço, a flor do seu jardim, a paisagem do busão, a unha pintada, a tatuagem, o livro que cê nem leu ainda, a fila pra qualquer coisa, sua cara quando acorda porque, afinal, você acordou e teve coragem de mostrar. E mais um tanto de coisa que já é piada faz tempo e você continua fazendo.

Só que agora Instagram virou Tinder, Facebook virou outdoor e WhatsApp nem sempre funciona. Tudo tá sempre mudando e sendo a mesma coisa. E quando cê acha que o clima vai melhorar, a chatice vai ser superada porque as tecnologias da comunicação vão tornar o mundo melhor, tudo piora.

Casamento. Um troço chato, sempre a mesma coisa, que só é bom pra empresa de eventos, porque a noiva fica na neura de emagrecer e o noivo na de fazer festa de despedida. Festa burocrática, todo mundo se diverte, compra gravata, esquece metade (por álcool ou tédio) e depois de uns dias liga pros noivos: como foi a lua de mel? Ferrou! Vai receber convite pra ver o álbum de fotografias. Ou quem dera fosse assim.

Agora a regra é ter que curtir as fotos em tempo real, ali mesmo, bêbado na pista de dança, chapado e com sono debruçado num bem-casado murcho e açucarado. Se não curtir, se não comentar, se não estiver por dentro daquela foto específica que todo mundo vai comentar no próximo encontro (distópico, sem pandemia), cê vira outsider. Sabe aquela tia chata que conta sempre as mesmas histórias? Ela tem nome: rede social.

Pior: ela te obriga a interagir com as histórias em tempo real.

Viajar já foi um momento de desligamento do mundo. Na volta, chamar os amigos pra contar os acontecimentos era um evento, uma festa. E as fotos completavam a bagunça. Hoje viaja todo mundo junto. Quem foi não para de postar pra quem fica. Quem fica não para de curtir e comentar e perguntar pra quem foi. Um inferno! O prazer da viagem e de refazer a viagem a cada caso contado, a cada foto mostrada, vai pro saco, todo mundo viajou junto. Um grande spoiler turístico. A ansiedade ferra os dois lados.

Nessa indiferença entre o que é público e o que é privado, a Corina Schumacher fala muito bem no documentário sobre o marido, lançado mês passado na Netflix. Quando alguém pergunta sobre o estado do piloto, ela tem a segurança no que ele sempre dizia: a vida privada é privada. Caramba, que lição! O cara é um dos melhores (o melhor?) da Fórmula 1, pessoa pública desde o início da carreira, e tem vida privada. E tem celetista por aí que tá mais público do que imagina. Se ainda houver CLT quando o texto for publicado.

Quem tá indignado porque o presidente acha que o país é dele entende essa história de patrimonialismo sem ler Weber. Quem entra num espaço privado e sai postando foto sem perguntar pro dono do espaço, também entende de patrimonialismo, mas carece de ler Weber. Essa história de “mi casa, su casa” precisa estar bem clara num momento em que a sociedade do espetáculo, em que é melhor mostrar do que ser, rege as postagens. Quando especialistas da Comunicação discutem conteúdo, é sobre essa ausência que comentam.