Polytheama

Fica no Rio de Janeiro um dos lugares mais descolados do mundo

Saúde! Por que só agora o bairro próximo ao centro nervoso do Rio entrou para a lista da 'Time Out Londres"? (Foto: Divulgação)

Se antes da pandemia eram apenas ruas de paralelepípedos e becos com escadarias de pedra, hoje, o bairro Saúde, no Rio de Janeiro, se vinga do marasmo esbanjando points com mesinhas ao ar livre e guarda-sol, valorizando ainda mais a arquitetura colonial portuguesa que escolta imóveis antigos. Cada vez mais cheia de charme, a região, próxima ao Centro frenético da cidade, vem fascinando cariocas, juiz-foranos (!) e turistas do mundo inteiro. O último grito cultural e boêmio que caiu nas graças do guia “Time Out Londres”, ocupando a 25ª posição do ranking anual, que lista os lugares mais legais para se conhecer no mundo.

Não é de hoje que a Pedra do Sal e o Morro da Conceição são focos de badalação, mas é o vizinho Largo São Francisco da Prainha a cereja do bolo que vem fazendo a diferença e, com isso, atraindo mais os holofotes para o bairro. Aquilo ali se tornou a novíssima meca de bares encantadores que se encontram na abordagem de um Rio de Janeiro em vertigem. É fácil entender o porquê.

Numa cidade de micro-diásporas, em eterna disputa de territórios, de grande violência simbólica, é preciso compreender este território, que é um marco da chegada dos africanos e também do nascimento de nossas mais nobres tradições culturais e religiosas, da capoeira ao samba e ao candomblé. “O que temos de dor e de potência”, escreveu a jornalista Flávia Oliveira.

De volta à Prainha, o grande nome por trás de toda esta revolução – o maior agitador daquela badalada cena cultural – é o filósofo, escritor e empresário Raphael Vidal, o verdadeiro anfitrião da praça. Carioca de porte baixo, barbudo e tatuado, de esquerda, dono da icônica Casa Porto, que sempre se posicionou a favor do isolamento. E nunca demitiu ninguém. Assim como as lives de Teresa Cristina, transformou-se num espaço de resistência. No Sábado de Aleluia, o botequim criou cem bonequinhos de vodu do “excelentíSSimo”, seguindo uma tradição de malhar o Judas. Bombou de encomendas e comentários no Instagram. Deu o que falar!

Há anos, Vidal mora por lá, com a mulher e os três filhos, no Morro da Conceição. A emblemática Casa Porto surgiu em 2013, como um espaço cultural, não um botequim. Na pandemia, o negócio (pasmem) cresceu e vieram outras portas abertas. O mais hypado delas é o Bafo da Prainha, uma casa de churrasquinhos com mesas ao ar livre, no mesmo Largo São Francisco da Prainha, onde fica a Casa Porto. Ali, dia e noite, uma turma animada de garçons veste uniformes de times de várzea para atender a freguesia. Nomes que vão de Moacyr Luz (que já cantou da sacada do Bafo da Prainha) e Jorge Aragão a Eduardo Paes e Fernando Molica batem ponto, assim como uma nova safra de Djs de música brasileira que, se der sorte, soltam o som ali mesmo, no meio do largo.

“Já faz tempo que a Saúde é um dos bairros mais legais do mundo. O que acontece hoje é apenas uma retomada de tudo que esse lugar simbólico já representa: fundamento de nossa própria história afro-brasileira, reduto cultural, musical e artístico cosmopolita e chão da gastronomia tradicional de botequim. Esse reconhecimento certamente não acontece por conta do movimento que acontece agora, mas por tudo que esse bairro — que por muito tempo foi conhecido apenas pelos seus logradouros, como o Largo da Prainha e a Pedra do Sal — é já faz tempo. É esse o movimento”, comenta Raphael Vidal, autor de “Algum lugar para cair e fechar os olhos de vez”, publicado pela Pallas.

Sobra catarse, falta vontade de ir embora. Recentemente, Rapha Vidal abriu o Tendinha, espécie de coworking num enorme sobrado no Beco João Inácio à moda carioca, criado para abrigar novos empreendedores de gastronomia, artes e moda. E vem aí, o Pequeno Museu Carioca, inaugurado com uma exposição dedicada à Tia Lúcia, artista que “fez uma pequena revolução” na região com suas oficinas para crianças, e promete abrigar encontros culturais e workshops. Na parte gastronômica, servirá quitutes como bolinho de bacalhau, pastel e tapioca.

Mais para frente, Vidal pretende lançar o Tatuí, no Beco João José, um restaurante especializado em frutos do mar a preços acessíveis.

‘O Rio é mais pulsante onde o couro está comendo’

Coletânea de ensaios curtos, com referências que vão de João do Rio a Walter Benjamin, o livro “O corpo encantado das ruas”, de Luiz Antonio Simas (Civilização Brasileira) – recordista de vendas de não-ficção do grupo Record na Bienal do Livro – desnuda um Rio de Janeiro em transe, que hoje sofre uma inflexão violenta do neopentecostalismo, que opera no racismo religioso e na morte da rua.

“Mas ao mesmo tempo você tem reações de quem quer manter a rua viva”, analisa Simas. “O processo é feito de perdas e ganhos. Vai chegar o momento em que a escassez vai gerar sabedoria. O Rio é mais pulsante onde o couro está comendo.”

De fato nem tudo são delícias naquela região da Saúde. A 20ª Vara Federal do Rio de Janeiro determinou que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a União garantam, em até 30 dias, o funcionamento regular do Comitê Gestor do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo, bem integrante do patrimônio mundial da Unesco localizado na zona portuária do Rio de Janeiro.

Composto por representantes de organizações afro-brasileiras da área e pelos órgãos e instituições envolvidos na conservação do sítio, o comitê é responsável por dirigir e planejar a gestão e valorização do Cais do Valongo. Trocadilhos à parte, estamos falando da joia da coroa desta área da cidade.. Um reduto igualmente famoso e resiliente. Mas isso é outro assunto…