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Denúncias de fraudes em cotas triplicaram na UFJF em 2020

Após os primeiros anos da adoação de cotas para negros nas universidades, estudantes de várias instituições iniciaram movimentos pelo país para denunciar fraudes (Foto: reprodução @BlogNegras)
  • Reportagem: Samuel Fontainha e Giovana Erthal , com colaboração de Ana Clara Ciscotto , Gabriel Magacho e Mateus Silverio, alunos do curso de jornalismo da Universidade Federal de Juiz de Fora, sob orientação da professora Ana Maria Monteiro. Edição: Davi Carlos Acacio e Ricardo Miranda, jornalistas de O Pharol.

Diante das crescentes reivindicações realizadas pelo movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em português), as temáticas ligadas à negritude ganharam destaque na agenda pública. Dentre os temas mais debatidos na realidade brasileira, notou-se uma grande expressividade na discussão sobre as cotas raciais e as frequentes denúncias de fraudes nos processos seletivos que adotam essa política.

Em 2020, no Twitter, surgiram diversas contas anônimas nas quais muitos jovens começaram a apontar estudantes de faculdades federais de todo o país que teriam ingressado nas instituições por meio de cotas de forma irregular. Uma dessas contas, que chegou até aos trending topics do país, era destinada especificamente às denúncias envolvendo a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Denúncias foram feitas via Twitter (Foto: Divulgação)

Ao longo de 2020, foram contabilizados mais de 900 tweets envolvendo cotas raciais e fraudes no processo de seleção. Ao passo que, em 2021 – até o mês de setembro -, apenas um terço desse quantitativo se mostrou presente em análise semelhante. O elevado número de menções levou alunos e pesquisadores a questionar quais atitudes seriam tomadas pela UFJF. A questão era entender como havia tanto aluno ingressando com denúncias de fraudes, mesmo com a criação de uma banca avaliadora no ano anterior.

De acordo com dados fornecidos pela Ouvidoria Geral da UFJF, por meio da Lei de Acesso à Informação, a instituição recebeu 301 denúncias de fraude em vagas reservadas no ano de 2020. A quantidade de manifestações majoritariamente feita por alunos não equivale necessariamente ao quantitativo de fraudes, mas apresenta a desconfiança dos estudantes com seus colegas de classe.

Historicamente, os cursos de graduação em medicina e de direito lideram o ranking e, no ano passado, a máxima prevaleceu com, respectivamente, 130 e 39 denúncias. A apuração ainda mostrou que cursos como medicina veterinária (15), farmácia (13) e jornalismo (7), por mais que não sejam destaques frequentes, como odontologia (32), também não estão isentos das queixas na Ouvidoria da instituição.

Fonte: Ouvidoria Geral UFJF

Denúncias começaram em 2018

As primeiras denúncias de possíveis fraudadores no ingresso por cota na UFJF surgiram em fevereiro de 2018. Segundo o diretor de Ações Afirmativas da instituição, professor Julvan Moreira de Oliveira, foram registradas 93 denúncias naquele ano.Na ocasião, foi instaurada uma comissão de sindicância formada por três docentes, três professores e duas técnicas administrativas para averiguar caso a caso. 

O professor explica que, antes de a comissão começar a atuar nas investigações desses casos, houve um estudo de quatro vertentes teóricas sobre raça no Brasil. O propósito era buscar embasamento para avaliar as acusações e também conhecimento sobre o racismo estrutural na sociedade ao longo da história.

As correntes teóricas estudadas pela comissão abordam desde a concepção evolucionista de raça, a visão de Brasil mestiço, a subordinação da questão étnico-racial frente à questão econômica social até o pensamento de que a raça é determinante nas relações sociais. Como fundamento para os processos de avaliação das denúncias apenas a última vertente é utilizada.

Desta forma, a comissão buscou entrevistar as pessoas denunciadas seguindo alguns critérios. O primeiro envolve a análise do fenótipo (pigmentação da pele, textura do cabelo e constituição do nariz, lábios). Ainda segundo Julvan, as pessoas que são ouvidas podem ainda apresentar testemunhas para comprovar sua raça ou ascendência.

O segundo critério utilizado foi baseado na segunda vertente exposta, de maneira a avaliar pessoas que se identificavam como pardas. No caso, a comissão ouvia as narrativas desses estudantes, de maneira a identificar situações em que eles possivelmente passaram por episódios de racismo ou não, além de considerar também a ascendência (filhos de casais interraciais). Os casos deferidos eram encaminhados a outros setores para processo de expulsão dos alunos, cabendo recurso inclusive na esfera judicial.

O diretor de Ações Afirmativas da UFJF informou que, somente no mês de agosto deste ano, foram registradas 16 denúncias de possíveis irregularidades nas cotas raciais. As acusações variam, isso porque, além do ingresso na graduação, as cotas foram recentemente adotadas para a pós-graduação e, desde 2014, são usadas nos processos seletivos de contratação de funcionários públicos federais.

Questionado sobre a falta de transparência para com a sociedade e a comunidade acadêmica em relação às apurações das denúncias e os desfechos de cada caso, Julvan explicou que a lei de proteção de dados impede a divulgação dos processos. Essa norma veda a apresentação dos dados pessoais dos fraudadores.

O professor, no entanto, não soube explicar o motivo de não se disponibilizar informações referentes às denúncias sem que haja a exposição de informações dos acusados, como o número de desligamentos por fraudes.

Surgimento da banca de heteroidentificação na UFJF

A comissão de sindicância criada em 2018 pela UFJF sugeriu, ao final dos trabalhos, que a instituição instaurasse uma banca de heteroidentificação, objetivando atuar diretamente na matrícula dos alunos com os mesmos critérios de avaliação e embasamento então utilizados. O procedimento passou a ser adotado no primeiro semestre letivo de 2019 no momento da matrícula sob a responsabilidade da Coordenadoria de Assuntos e Registros Acadêmicos (CDARA).

Para o cientista social, Lucas Loureiro, que estudou as ações afirmativas para negros nas universidades públicas, o fenótipo está relacionado a como o corpo é reconhecido e identificado pelo outro em determinados espaços. “Mesmo que você apresente um atestado médico de ancestralidade negra, se esse fenótipo não aparece no seu corpo, você pode ser denunciado.”

Nesse contexto, ele explica que muitas denúncias estão em confluência com o que seria o limite entre pardo, negro de pele clara, e branco. Ao analisar somente o fenótipo, existe a possibilidade de silenciar uma vivência não-branca. Ao mesmo tempo, a apreciação da ascendência pode legitimar a fraude, permitindo que pessoas reconhecidas como brancas continuem ocupando vagas destinadas aos negros e pardos.

Além disso, no que diz respeito às ações afirmativas e o processo de heteroidentificação, Lucas considera que tais critérios podem ser burlados e que outros elementos, como situação socioeconômica do indivíduo influenciam de maneira significativa tanto na suspeita de fraude quanto nas denúncias: “É importante destacar que os critérios de cada grupo beneficiado pela política podem ser burlados”.

Ela chama atenção para o fato de a legislação sobre a questão inserir uma cota dentro de outra. “Então, por exemplo, o suspeito pode não ter cometido fraude no critério socioeconômico, mas sim na autodeclaração racial”.

 No caso da UFJF, entre 2018 e 2019, Lucas disse ter observado que a maior parte das denúncias envolve as cotas PPI (pretos, pardos e indígenas), mas também há casos de suspeitas em outros critérios. “Estes outros elementos podem ser considerados ou não na hora da denúncia, depende sempre da quantidade de informação que o denunciante tem acesso. Normalmente, quando enviam algum tipo de justificativa para a ouvidoria é uma foto ou descrição do fenótipo do suspeito.”

Contexto histórico do sistema de cotas no país

Após a Conferência Mundial da Organização das Nações Unidas (ONU) Contra o Racismo, Intolerância e a Xenofobia em Durban, na África do Sul, o Brasil se comprometeu a criar políticas públicas para combater a discriminação racial. No ano 2000, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro aprovou a lei de número 3.524, que tinha o intuito de reservar metade das vagas das universidades estaduais para estudantes de escolas públicas.

Um ano depois, outra lei assegurou 40% dessas vagas para candidatos autodeclarados negros e pardos no estado. Como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) já reservava vagas para estudantes de escolas públicas fluminenses negros e pardos em seu vestibular desde 2004, tornou-se assim a primeira instituição federal do país a adotar o sistema de cotas.

No mesmo ano, a Universidade de Brasília(UnB) também estabeleceu uma política de ações afirmativas para negros em seu vestibular. Logo depois, várias outras universidades federais passaram a reservar vagas para estudantes de escolas públicas e candidatos negros, pardos e indígenas. Nesse cenário, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) foi a quarta instituição de ensino superior pública do país e a primeira de Minas a adotar a reserva de vagas, iniciando seu processo em 2006.

Não existia até então nenhuma regulamentação em nível federal sobre as cotas. No início de 2012, o partido DEM entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a lei das cotas na UnB. Por unanimidade, a Suprema Corte recusou a ação, gerando jurisprudência para adoção de ações afirmativas em todo o país.

Em agosto de 2012, foi sancionada a lei federal 12.711 que determina a todas as universidades federais e todos os institutos federais de educação a destinação de, no mínimo, 50% das vagas de cada curso para estudantes que concluíram o ensino médio em escolas públicas. De acordo com os dados mais recentes apresentados no censo da educação superior de 2019, cerca de 690 mil estudantes são contemplados por algum programa de reserva de vagas. Desses estudantes, 343 mil alunos ocupam as vagas reservadas pelo tipo étnico.

Embora o avanço, o sistema de cotas raciais no Brasil precisa ser aperfeiçoado e mantido para conseguir cumprir seu papel de reparação social histórica de forma efetiva. Lamentavelmente, as políticas públicas dessa natureza ainda podem ser facilmente burladas, uma vez que ainda não há transparência suficiente nos processos.

Faltam às instituições que adotam políticas de cotas em seus processos seletivos acompanhamento criterioso e constante aprimoramento. O reconhecimento de que o sistema hoje pode ser facilmente fraudado já seria um começo para adoção de ações efetivas suficientes para mudar a realidade.