Em meio à polêmica tramitação do projeto de lei que prevê cotas no serviço público municipal para pardos e negros e ainda ecoando as discussões colocadas em novembro por ocasião do Mês da Consciência Negra, O Pharol conversou com o diretor de Ações Afirmativas e professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Julvan Moreira de Oliveira.
Doutor em educação e líder do grupo de estudos e pesquisas em Africanidades, Imaginário e Educação (Anime), ele falou sobre a identidade e a tradição da população negra, do racismo ainda presente na sociedade brasileira e da importância de oportunizar o acesso das minorias aos espaços de educação e trabalho, nas esferas pública e privada.
Quais reflexões a celebração do Dia da Consciência Negra deve trazer à sociedade?
É uma data que tem uma importância simbólica muito grande. O dia 20 de novembro foi quando Zumbi dos Palmares foi assassinado, um símbolo da luta contra a escravidão e o racismo. A ideologia de que um grupo étnico é inferior ao outro, o que podemos definir como racismo, era a justificativa para escravizar os negros, os indígenas.
Celebrar Zumbi, assim como Dandara e Acotirene – que foram lideranças femininas negras importantíssimas -, é reafirmar essa luta contra o racismo estrutural e institucional ainda presente na nossa sociedade. A reflexão que precisa ser feita é sobre qual mundo queremos viver, se queremos perpetuar a desigualdade entre as pessoas.
Como combater o racismo?
Há vários caminhos. Combater o racismo passa pela criminalização para quem comete atitudes racistas e pelo processo pedagógico de educar, da pré-escola às universidades, ensinando sobre a diversidade e que todos temos direitos e somos iguais. Também é preciso reafirmar os valores, as tradições e a identidade negra.
Em outubro, a UFJF aprovou a política de cotas para os programas de pós-graduação. Como vai funcionar a reserva das vagas e qual é a importância dessa iniciativa?
Foi aprovada a reserva de 50% das vagas da pós-graduação stricto sensu, que são os programas de mestrado e doutorado, para negros, indígenas, quilombolas, pessoas trans, pessoas com deficiência e refugiados. É uma iniciativa de extrema importância para garantir que esses espaços sejam acessados por grupos minoritários.
O racismo estrutural faz com que quanto maior o nível de ensino, menor seja a participação dos grupos minoritários. Isso é perceptível na própria Universidade,onde temos pouquíssimos professores e pesquisadores negros, por exemplo.
Com a reserva das vagas, a UFJF está se comprometendo com uma sociedade mais igualitária e, para isso, é preciso superar esse racismo estrutural. Assim, daqui alguns anos, nosso corpo docente terá a representatividade desses grupos.
No momento, a Câmara Municipal discute o projeto de lei 158/2021, que prevê a reserva de 20% das vagas de concursos públicos municipais para negros e pardos. Você está acompanhando essa discussão? Qual é a sua avaliação sobre a proposta?
Em setembro fez 20 anos que o Brasil e outros 156 países se comprometeram com a realização de políticas que reparassem a opressão histórica. Foram 4,8 milhões de africanos que chegaram ao nosso país como escravos e, depois deles, outras gerações foram escravizadas. Essa dívida histórica foi reconhecida em 2001, durante a conferência das Organizações das Nações Unidas (ONU), em Durban, quando foi assinado um relatório de políticas afirmativas.
Portanto, é signatário seguir com esse compromisso. A Câmara Municipal de Juiz de Fora, ao pensar em políticas para superar desigualdades, está cumprindo o seu papel. É fundamental essa aprovação, e espero que os vereadores sejam sensíveis ao que foi preconizado pela ONU. Vale lembrar que em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou constitucionais as políticas afirmativas.
Em se tratando da iniciativa privada, os dados mais recentes da Rais mostram que o mercado de trabalho de Juiz de Fora ainda reserva uma desigualdade em termos de participação e renda dos trabalhadores negros. Como você avalia essa situação? Como é possível modificá-la?
Algumas empresas já vêm adotando políticas afirmativas, mas ainda é preciso que essas medidas cheguem a mais lugares. A aprovação do projeto de lei na Câmara Municipal pode contribuir para mostrar a relevância dessas ações na esfera pública e incentivar uma maior inclusão, também, na iniciativa privada.
Com relação à renda, as cotas nas universidades são o caminho para reduzir a desigualdade, que está associada à formação. Também precisamos pensar a educação básica. Até os anos 70, o ensino era destinado apenas aos grupos privilegiados. Nos últimos anos, houve a democratização, mas não o financiamento.
A falta de infraestrutura leva a população pobre – que é em sua maioria negra – ao desempenho desigual. Por isso, é preciso pensar o financiamento das escolas públicas, a valorização dos professores e a parceria com as universidades e as comunidades para assegurar o sucesso da educação básica.
Você lidera o grupo de estudos e pesquisas em Africanidades, Imaginário e Educação (Anime). Qual é o conceito de africanidades e qual é a influência da cultura negra em Juiz de Fora?
As africanidades são elementos de origem africana, mas que estão presentes na cultura brasileira, seja na arte, na literatura, na música, por exemplo. Por isso, a proposta de pensar numa filosofia a partir desses referenciais, ou seja, afro-referenciada. Antes da pandemia, o nosso grupo de pesquisa se encontrava presencialmente toda semana para discussões dentro dessa temática. Agora estamos fazendo lives pelo nosso canal no Youtube e no Instagram.
Juiz de Fora, assim como toda a região Sudeste, recebeu muitos africanos da cultura bantu. Esses elementos fazem parte da nossa identidade nacional e estão presentes no nosso dia a dia, na forma de falar o português, na gastronomia, no próprio comportamento.