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Transfobia nas escolas: como agem educadores e alunos com o diferente em sala de aula

Pais protestam contra transfobia na entrada de escola em Fortaleza (Foto: Divulgação/Redes)

De um lado, o professor que se nega a chamar o aluno pelo nome social. Do outro, os colegas que o elegem representante da turma. Separando estes dois mundos, um abismo de desinformação, ignorância e preconceito, além de traumas e feridas que levam uma vida para cicatrizar. Como nos conta o estudante trans Erick Brian, depois de três mandatos à frente da sua classe numa escola pública em Juiz de Fora.

“Tornei-me representante porque ninguém naquela sala me representava, eu olhava em volta e só havia pessoas hétero, cis, e eu no meio deles. Queria que meus direitos também fossem vistos, foram três anos seguidos e com eleições, nunca fui o mais certinho da sala, mas sempre estive lá para apoiar meus colegas quando precisavam.”

Infelizmente, esta não é a realidade majoritária em nosso país. O ambiente escolar brasileiro é hostil para crianças e adolescentes trans – e os principais autores de transfobia são os profissionais de instituições de ensino. Essa é uma das conclusões do estudo inédito “Vivências reais de crianças e adolescentes transgêneres dentro do sistema educacional brasileiro“, lançado este mês pelo Grupo Dignidade, ONG que atua há mais de 30 anos na promoção dos direitos da população LGBTQIA+.

Foram entrevistados 120 pais, mães e responsáveis que reconhecem ter uma criança ou adolescente transgênero, moradores de 62 cidades em 17 estados brasileiros. Entre estes, 77,5% informaram que seus filhos, entre 5 e 17 anos, já foram vítimas de bullying transfóbico no ambiente escolar. Entre os adultos autores das violências, que podem ser físicas, verbais, emocionais ou cyberbullying, 65% eram profissionais das instituições de ensino, sendo que 56% deles eram professores. 

Realizado com apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids), o estudo foi conduzido pela coordenação nacional da área de proteção e acolhimento a crianças, adolescentes e famílias LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, intersexo e outros) do Grupo Dignidade.

“Os dados reforçam o que é sabido entre as mais de 200 famílias que já foram acolhidas: o ambiente escolar brasileiro pode ser de terror para crianças e adolescentes trans”, destaca Thamirys Nunes, coordenadora da pesquisa, mãe de uma criança transgênero e autora do livro “Minha Criança Trans: relato de uma mãe ao descobrir que o amor não tem gênero”.

Quem concorda é Claudia Velasquez, diretora do Unaids no Brasil, para quem o ambiente escolar deveria ser um espaço de acolhimento, de segurança e de aprendizagem da convivência com a diversidade. 

“É muito importante que profisisonais de educação e equipes de administração escolar conheçam esta pesquisa, reflitam sobre os dados apresentados e busquem implementar políticas que combatam qualquer tipo de discriminação e estigma contra as crianças e adolescentes trans pelas quais são responsáveis”, reforça. 

A escola é considerada um território sagrado e deve ser sempre um espaço de inclusão, plural e aberto para a diversidade e o respeito a todos os estudantes. A expectativa, de acordo com a representante da Unesco no Brasil, Marlova Jovchelovitch Noleto, é que, de posse desses dados, “possamos contribuir para a construção de programas e políticas que tornem a escola mais inclusiva e contribuam para acabar com o preconceito e a discriminação”.

O estudo mostra ainda que 24% das famílias mudaram as crianças e adolescentes trans de escola em decorrência de bullying transfóbico sofrido na instituição. E também traz que 98% dos pais, mães ou responsáveis não consideram o ambiente escolar brasileiro seguro para suas crianças e adolescentes trans. 

“No meu último ano da escola eu chorei para minha mãe me mudar, só mudei de ideia porque já estava no fim do período e isso iria me prejudicar. Mas o que passmos na escola não ajuda nem a entender as pessoas trans e nem a elas mesmas se entender. Já passou da hora de professores de biologia por exemplo dizer que só mulheres menstruam, alguns homens trans ainda passam por isso, e tá tudo bem sabe? O que não está bem é continuar com essa visão de mundo passado”, opina Brian.

Da fase ‘Maria Sapatão’ à aceitação

Antes de se tornar Erick, Tainá sentiu na pele as marcas dolorosas da rejeição dentro da escola, que era para ser seu ambiente seguro.

“Teve uma época que um menino começou a me perseguir e a jogar piadas, dizendo que eu não era menino e essas coisas. Isso se tornou recorrente, até que teve um dia que eu estava saindo do banheiro ele disse ‘se é menino mesmo porque usa o banheiro feminino?’”, narra. “Uma vez, depois de uma quase confusão com esse menino, fomos parar na diretoria, e o vice-diretor me pediu para ‘fingir’ que não tava acontecendo nada.”

O bullying maior – se é que é possível mensurar – foi, segundo Erick, no ensino fundamental. “Era chamado de ‘Maria homem’, ‘sapatão’ e coisas do tipo. Isso retardou muito minha transição”.

Erick cursa fisioterapia atualmente, mas, no ensino médio, chegou a receber faltas de um professor que se recusava a chamá-lo pelo nome social (Foto: Arquivo pessoal)

No ensino médio, veio a aceitação e, como consequência, a transição. Alguns professores, ele cita, foram “como pais”, entre eles Cecília, Wilton e Dayana, mas em compensação, outros deixaram aquele momento ainda mais difícil e insuportável. Um, em específico, é o tal que se recusava a dizer seu nome social na chamada.

“Levei algumas faltas por não querer responder já que simplesmente me constrangia”, explica. “Ficar com alguém sempre me deixou inseguro, nunca sei se preciso ou não falar pra uma menina que eu sou trans, porque para mim isso é a coisa mais normal do mundo. Eu sou um homem, como seu pai, seu irmão, seu tio, eu só precisei descobrir isso com o tempo, e mudar a forma como me viam, mas isso não reduz o fato de que eu sou um homem.”

Para ele, a informação é o antídoto contra o medo em relação ao novo. “Precisa começar em casa, na precisa também que seja dada continuidade nas escolas.”.

Hormonização infantil

Hoje, aos 19 anos, Erick está na universidade estudando Fisioterapia, a ciência que trata de verdadeiros distúrbios funcionais. Ele se descobriu homem trans com 15, mas iniciou a transição com 18, quando chegou à maioridade. O que acende outra polêmica abordada pela pesquisa do Grupo Dignidade: a hormonização de crianças. 

As terapias hormonais no Brasil só são permitidas a partir dos 16 anos e cirurgias para afirmação de gênero somente a partir dos 18. Terapias para bloqueio puberal, a fim de evitar o desenvolvimento de caracteres de gênero (pelos faciais e engrossamento da voz em meninas trans e crescimento de mamas e menstruação em meninos trans), só são realizadas em ambulatórios especializados do SUS e seguindo protocolos de pesquisa, com rigoroso acompanhamento de equipe multidisciplinar. 

“Os resultados do estudo corroboram nossos 30 anos de ativismo e militância LGBTI+, mostrando, nos retratos das realidades vividas e vivenciadas, a dificuldade da aceitação, o bullying na escola, o isolamento social por ser diferente do convencionalmente esperado”, comenta o fundador e atual diretor executivo do Dignidade, Toni Reis.

Com  19 anos, terapia hormonal inicializada, estabilidade financeira, uma moto, documentos retificados, CNH e faculdade, Erick Brian queria fazer a diferença nas estatísticas, e fez.

“Para a maioria das pessoas trans isso não passa na cabeça nem como um breve sonho”, diz. “Eu precisei de muito tempo para me entender trans, muita maturidade emocional para iniciar a minha transição, porque é uma bomba de hormônio que o seu corpo recebe. Eu fiquei muito nervoso nas minhas primeiras doses, pouca paciência sabe? Não acho que uma criança deveria passar por uma hormonização tão cedo, mas não sou 100% contra. O acompanhamento com psicólogos me ajudou muito e acho que seria o primeiro passo para uma criança e principalmente se esse psicológo for especializado em pessoas trans. E tem também o bloqueador hormonal, porque estar em um corpo com o qual você não se identifica é insuportável. Usar o bloqueador hormonal em crianças até que elas entendam o como realmente se identificam e estejam prontas para os ‘efeitos colaterais’ da hormonização.”

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