Uma das correntes precursoras do liberalismo surgiu na França do século XVIII, denominada fisiocracia, em resumo, poder da terra. Os fisiocratas advogavam em favor da tese sob a qual a riqueza de uma nação tinha sua origem na exploração das potencialidades da natureza. Isso porque a França, ao contrário da rival Inglaterra, cada vez mais envolvida com o desenvolvimento de um mercantilismo marítimo comercial e de uma expansão manufatureira sem precedentes, mantinha uma economia majoritariamente rural. Sustentavam-se por meio da exploração da terra e de um campesinato exaurido pela servidão e pelas obrigações feudais para manter os gastos estatais e os excessos de uma nobiliarquia nababesca.
Mas os fisiocratas foram muito mais além ao defenderem que a exploração da terra deveria ficar livre do controle estatal, com segurança jurídica aos proprietários e a defesa do laissez-faire como uma ordem natural das leis que regem a economia. Em síntese, ao Estado caberia assegurar o estatuto da propriedade privada e da livre iniciativa nas relações de mercado. Pouco mais de dois séculos se passaram, e as relações de mercado induzidas pelas práticas do liberalismo engendraram os mecanismos daquilo que Karl Polanyi denominou de a grande transformação. De forma avassaladora, a economia de mercado autorregulado sob a égide do capital passou a se impor e determinar todas as relações possíveis entre os seres humanos e desses com a natureza e seus recursos.
De tempos em tempos, o resultado mais nefasto de tudo isso aparece diante de nós da maneira mais devastadora. À medida que os anos passam e as décadas se sucedem, o capitalismo corporativo e financeiro traz como corolário o empobrecimento sistemático da grande maioria da população mundial, a concentração absurda e vergonhosa de riqueza nas mãos de uma ínfima parcela de indivíduos e a destruição desmensurada do meio ambiente, deixando o planeta e sua biodiversidade seriamente ameaçados. A natureza emite sinais de que sua capacidade de regeneração está se exaurindo e os efeitos colaterais de seu esgotamentos e manifestam através de calamidades como secas, tempestades, geadas, tufões, ciclones, nevascas e ondas de calor ou frio, cada vez mais frequentes e intensas ao redor do mundo.
No Brasil, as mazelas humanas e ambientais ganharam ainda mais dilatação diante do contexto vivido pelo negacionismo cínico, das atitudes irresponsáveis e criminosas de agentes públicos e privados. Assistimos perplexos ao abandono completo de políticas públicas condizentes com atitudes humanitárias e ecológicas somados a posicionamentos refratários à ciência e à educação. Como se a ignorância passasse a significar o maior exemplo da virtude humana.
A mercantilizacão desenfreada e sem limites do solo rural e urbano e o pouco (ou quase nenhum) esforço realizado para combater os transtornos perpetrados pelo afã do capital e suas formas de se apropriar dos espaços e os converter em mercadoria, contribuem para o empobrecimento e a expansão da miséria, retirando dos segmentos mais vulneráveis condições elementares de subsistência. Os governos perdem a capacidade de controle do sistema econômico e o tecido institucional sucumbe ante os interesses que passam ao largo de compromissos sociais e ambientais. Os marcos regulatórios e preceitos constitucionais, junto aos organismos de fiscalização e controle estão fragilizados e perdendo sua capacidade intervencionista. Isso fica evidente no governo Bolsonaro dado os ataques sistemáticos às políticas de proteção ao meio ambiente e seu esforço para enfraquecer os órgãos de fiscalização.
As intensas chuvas que atingiam várias regiões do país, como sul da Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro não podem e nem devem ser utilizadas de forma inescrupulosa como a causa principal das calamidades. Outros fatores não climáticos merecem a devida atenção porque estão ligados à forma de ação sobre os recursos ambientais, rurais e urbanos nos quais sobressaem os interesses do poder econômico à revelia do planejamento e gestão do uso do solo em benefício do bem-estar social e do desenvolvimento sustentável. Aqui em Minas, é fato público e notório a forma como as mineradoras estão exercendo seu domínio sobre as regulamentações e diretrizes ambientais de maneira a tornar mais frágeis os mecanismos de controle sobre a atividade de mineração no estado.
O produto das cheias, como dito, não se trata meramente de um fenômeno natural, compõe um catálogo de abusos do capital que tendem a se tornar cada vez mais frequentes. Somam-se às sucessivas queimadas criminosas, às grilagens e às invasões de terras demarcadas ou de preservação ambiental, ao urbanismo hostil, à especulação imobiliária, à exclusão territorial. E o grau de violência que essas atrocidades acontecem é de escandalizar qualquer cidadão sensato e com o mínimo de sensibilidade e consciência ecológica. Sofrem os pobres e trabalhadores em geral, as populações indígenas, quilombolas, os povos nativos e ribeirinhos, a natureza como um todo.
Forças perigosamente destrutivas ganharam com as eleições de 2018 o passaporte para seu projeto de poder, de colocar em curso o desmantelamento do pouco que se construiu nesse país de Estado Democrático de Direito. Não quer dizer que tal empreendimento foi inaugurado agora, aliás, sempre esteve presente, tencionando a sociedade e o poder público, mas agora ocupa o poder, está entranhado no interior das instituições, nos órgãos de gestão, técnicos e administrativos. Todo esse desastre institucional se agravou com a pandemia, e a perversidade desse desgoverno ficou ainda mais escancarada depois da famigerada reunião de abril de 2020. Na ocasião em alto e bom som, sem o menor pudor, foi dito aos quatros ventos que a ordem do dia era abrir a porteira e passar a boiada por cima da fauna, da flora e da vida dos brasileiros.
Iniciei este texto remetendo ao século XVIII, quando, através das teorias fisiocráticas, o liberalismo insurge e redimensiona a lógica do mercado, da produção e do trabalho, ou seja, das relações humanas e das formas de exploração da natureza com base na permuta e na troca. E também é surpreendente a obra de Karl Polanyi, escrita há mais de 60 anos, ao operar uma análise minuciosa sobre a expansão da economia liberal capitalista.
Polanyi nos alerta sobre a periculosidade da expansão de um sistema autorregulado de oferta e procura de bens sobre todas as dimensões da vida humana: “Foi este, precisamente, o ajuste que ocorreu sob o sistema de mercado. O homem, sob o nome de mão de obra, e a natureza, sob o nome de terra, foram colocados à venda” (A Grande Transformação, Ed. Elsevier, 2012, p. 146). Atualmente, muito pouco há no horizonte, de algo de fato colocado à mesa como proposta factível para reverter o quadro da devastação ambiental em escala mundial. Uma grande transformação socioambiental ainda não tem força para sobrepor-se aos ditames do sistema capitalista liberal tal como se apresenta e a forma como exerce seu domínio sobre os recursos naturais, humanos e econômicos.