Polytheama

Há 200 anos Saint-Hilaire iniciava a viagem que apresentou Ibitipoca ao mundo

(Fotos: Leonardo Costa)

Há exatos duzentos anos partia da Freguesia de Inhaúma, no Rio de Janeiro, a expedição do botânico francês Augustin François César Prouvençal de Saint-Hilaire com rumo ao mar de montanhas de Minas Gerais. O naturalista, financiado pelo governo da França, coletou cerca de 30 mil amostras de plantas, animais e minerais que tinham como destino o Museu de História Natural, em Paris. 

Saint-Hilaire viajou pelas terras brasileiras entre os anos de 1816 e 1822, passou em áreas onde hoje se situam os estados de Goiás, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em suas anotações de campo, descreveu ainda aspectos geográficos e os costumes e modo de vida dos povos que visitava. Voltou ao país de origem em 1822, para estudar as coleções das suas viagens reveladas em várias publicações científicas. 

Na sua última viagem pelo Brasil o botânico foi herborizar na serra de Ibitipoca e O Pharol vai contar como que o francês de Orleans, nascido nas históricas margens do rio Loire, foi parar no Pico do Pião.

Freguesia de Inhaúma, 29 de janeiro de 1822

“Parti a 29 de janeiro de 1822 acompanhado de meu novo arreieiro, de Laruotte, e dois Guaranys montados. Firmiano vai a pé…Quem poderá pintar as belezas ostentadas pela baía do Rio de Janeiro, esta baía que, segundo o almirante Jacob, tem a capacidade de todos os portos europeus juntos? Quem poderá descrever aquelas ilhas de formas tão diversas que de seu seio surgem, essa multidão de enseadas a desenhar-lhes os contornos, as montanhas tão pitorescas que as emolduram, a vegetação tão variada que lhes embeleza as praias?!”

A expedição saiu da freguesia, hoje bairro de Inhaúma, zona norte do Rio de Janeiro, com destino ao Caminho do Comércio. A comitiva pernoitou no engenho da Paróquia de Santo Antônio de Jacutinga, hoje a Catedral de Nova Iguaçu, no dia 30. Quatro dias depois, já cortava o rio Paraíba do Sul, na região de Vassouras.

Aldeia das Cobras, 5 de fevereiro de 1822

“Nada se equipara a injustiça e á inepcia graças ás quaes foi até agora feita, a distribuição das terras. É evidente que, sobretudo onde não existe nobreza, é do interesse do Estado que haja nas·fortunas a menor desigualdade possivel no Brasil, nada haveria mais facil do que·enriquecer certa quantidade de familias.”

No dia 6 de fevereiro, a jornada passou por Rio Preto. Saint-Hilaire descreveu suas casas com jardins plantados de “bananeiras, cuja a pitoresca folhagem contribui para o embelezamento da paisagem”. Citou o “registro” que ficava depois da ponte, onde se verificava até se o viajante não levava cartas para não “lesar o correio em sua receita”. No dia 8 pela manhã, parte da trupe foi coletar plantas na Serra Negra. Durante o passeio, Saint-Hilaire encontrou as florestas sombrias e montanhas altas e identificou mudanças significativas na vegetação pesquisada após encontrar diferentes espécies.

Fazenda de São João, 11 de Fevereiro de 1822

“Os meus pequenos Guaranys, sahiram do Rio de Janeiro montados no mesmo burro; um no arreio e outro á garupa; mas o animal machucou-se muito ao cabo de alguns dias. Não pode ser utilizado atualmente senão por uma das duas creanças. Eu as fazia cavalgar, ora uma, ora outra, e quando andava a pé, deixava quasi sempre minha mula ao que não podia ir montado.  A mais ou menos um quarto de legua daqui, passamos, sobre uma ponte·de madeira, o pequeno rio chamado Rio do Peixe e pelo·percurso vimos varias fazendas.”

O Santo que encontrava os animais

No dia 14 de fevereiro, Saint-Hilaire chegou na Vila de Ibitipoca e destacou a presença de “algumas casinholas e do pior aspecto”. Parou em uma delas e pediu informação “a uma numerosa família” sobre a autoridade local e sobre o caminho até a Fazenda do Tanque, a que sabia ser a mais próxima da serra do Ibitipoca. Um morador se prontificou a dar as informações e levá-lo até a propriedade. “Este homem não só me indicou o caminho com a polidez inata aos Mineiros como quis servir-me de guia durante alguns instantes. Depois de seguir uma estrada que percorre um vale coberto de mata, cheguei, afinal ao Tanque.” O francês relataria depois a decadência da fazenda, com moradores pobres e o local caindo em ruínas.

A primeira referência da área que hoje corresponde ao Parque Estadual do Ibitipoca citada nos textos do botânico é o Rio do Salto, riacho que acompanha quase todo o trajeto dos turistas que visitam o roteiro das águas dentro da unidade de conservação. Saint-Hilaire mencionou os rochedos que margeiam o Salto, com destaque para as manchas pretas, definidas pelo francês como lichenoides, mas no imaginário dos moradores da região virou uma imagem de um Santo Antônio. No relato, o local foi definido como um objeto de veneração para todos que perderam animais e vão lá pedir ao Santo, que não falha, a volta das crias. Hoje o local é conhecido como o Paredão do Santo Antônio.

Fazenda do Tanque, 15 de fevereiro de 1822.  

“Fui hoje herborisar na Serra  de Ibitipoca, guiado por duas creanças da fazenda do Tanque. A base das montanhas ficam bosques espessos que atravessámos subindo insensivelmente; de repente encontramo-nos em immenso pasto cujo terreno é uma mistura de areia e terras escuras.”   

A família do “Mata-Onça”

Subindo o riacho, a expedição chegou a um pequeno casebre, construído de taipa e sapê com portas fechadas por couros de animais abatidos ali na serra. Nele morava uma família, vinda de Rio Preto, e sobreviviam caçando nas montanhas. O naturalista contou que foi recebido por uma mulher vestida de saia e camisa de algodão suja e uma grande quantidade de criancinhas, “trajadas de modo mais nobre”, que a rodeava. O marido estava no mato, mas voltaria logo. 

“Disse-me que alli estava, havia apenas um anno, e nunca sentira um unico momento de tedio. Os trabalhos caseiros, as gallinhas e os animaes domesticos tomam-lhe o tempo todo. Havia, além disto, sempre algo de novo em seu pequeno lar. Era preciso ora plantar, ora colher; nasciam-lhe creações; o marido e o filho mais velho sahiarn para caçar e assim traziam ora um porco do matto, cuja carne, assada, comiam todos, ora um gato selvagem. E com effeito mostrou-me muitas pelles já curtidas de varias destes animaes .”

O patriarca chegou mais tarde e logo se ofereceu para ser o guia do botânico. Antes da empreitada a cavalo, eles comeram queijo, farinha e bananas. Durante a resenha, o moço revelou ter matado mais de dez onças na região, para tornar ali um pasto mais seguro. O relato foi para o diário do visitante francês. Após o almoço rumaram para o Pico do Pião, “nome que se dá ao cume menos arredondado e mais alto de toda serra. Saint-Hilaire destacou a vista do horizonte para as montanhas dos arredores do Rio de Janeiro e o “terror” que sentiu quando chegou na beirada para avistar as espessas florestas escondidas em sombrios vales devido a altura da “borda escarpada”. Depois das coletas de praxe, voltaram para a casa da família do seu guia, onde a esposa já havia preparado um prato com palmitos e cuias e após essa segunda refeição se despediram. 

Ponte Alta, 16 de fevereiro de 1822.  

” Atravessámos primeiro a villa de lbitipoca, que conhecia mal, e julgava ainda mais insignificante do que realmente é. Fica, como já expliquei, situada numa collina e compõe-se de pequena igreja e meia duzia de casas que a rodeiam, cuja maioria está abandonada alem de algumas outras, igualmente miseraveis, construidas na encosta de outra collina. Não espanta pois, que inutilmente haja eu procurado, hontem, nesta pobre aldeia, os generos mais necessarios á vida.”

A verdadeira Vila Rica

Com o trabalho concluído na Vila de Conceição do Ibitipoca, o francês seguiu caminho para Barbacena. Nos seus registros, ficou o relato de abandono de um povo retratado nas ruínas das fazendas, casebres, cascalhos nas margens dos riachos, pessoas pobres com vestimentas humildes, descritas com detalhes na visão europeia do naturalista. Aquelas pessoas, relegadas ao esquecimento após as descobertas das riquezas em Vila Rica, dentro das suas “casinholas”, acolheram o estranho viajante e lhe ofereceram estadia, alimentação, informação e proteção. Com o respeito e a polidez do mineiro, revelaram a Saint-Hilaire o espírito da Vila de Conceição do Ibitipoca. Esse espírito que resiste ainda hoje e surpreende os turistas que buscam a natureza da serra e descobrem no meio do caminho uma Vila mineira, rica de corações.

  • P.S. As citações são trechos do livro “Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Geraes e a São Paulo (1822)”.
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