Polytheama

A mulher veado: repensando o Brasil na voz de Maria Alcina – Parte I

Nascida e criada em Cataguases, Maria Alcina levou seu nome a todos os cantos do país como intérprete da canção "Fio Maravilha" no VII Festival Internacional da Canção Popular, de 1972

Às pessoas que lêem O Pharol, desejo um 2022 suculento… Da minha parte, espero poder contribuir como uma kombi de quitandeira aos berros de um alto-falante passando na sua rua! Chamando para ver o que temos de cultura.

Proponho que meus textos neste canal ressoem os frutos mais gostosos, maduros e fresquinhos da cultura, sempre mais atento às pontes que ligam Juiz de Fora, Zona da Mata, Minas Gerais, Brasil, Atlântico e o mundo.

Para abrir os trabalhos apelo à explosão frutada e apimentada da cantora mineira Maria Alcina. O motivo da escolha mistura fascínio com sua história e urgência de um fato, as bodas de ouro do estrelato de Alcina neste 2022, com os 50 anos do prêmio de “Fio Maravilha” no Festival Internacional da Canção, 1972. Desde setembro de 2021, tenho conversado com Maria Alcina por WhatsApp, e essa troca tem dado o maior caldo. Sirvo a vocês em três doses, para uma imunização completa do coração, da memória e da alegria. Aí vai a primeira!

Maria Alcina pelas lentes de Eduardo Neratika para o Portal Pepper (São Paulo, 03/04/2017)

Trago notas de duas longas conversas que mantive com a cantora Maria Alcina em São Paulo – uma em setembro de 2021, a outra, nesta semana. E complemento com achados de uma deliciosa pesquisa sobre esta personagem que se define cantando assim:

Ninguém me tira se eu tô na roda
Eu nunca saí de moda
Só quero quem bem me quer
Eu sempre fui mesmo da pá virada, safada
Fada, fadada a ser o que sou
Pois é!

Eu sou alcina
Uma sapeca, uma moleca, uma menina
Quem vem de lá
Eu canto samba para quem quiser sambar
Eu sou alcina
A alegria é meu lugar, é minha sina
Quem quer dançar
Eu canto rumba, canto rock e chá chá chá

Essa menina sapeca da composição acima, “Eu Sou Alcina”, assinada por Zeca Baleiro, abriu com esses versos o seu show comemorativo dos quarenta (40) anos de carreira, em 2015, “De Normal Bastam os Outros”. Com participações especiais de Ney Matogrosso, Karina Buhr, a Rainha do Forró Anastácia e Felipe Cordeiro no palco. Dando vozes às canções compostas por grande elenco: Arnaldo Antunes, Aldir Blanc, João Bosco, Jorge Ben Jor, Adoniran Barbosa, André Filho… além da canção tradicional “Bacurinha”. O espetáculo integrou a coleção documental do Canal Brasil, com registros do backstage, cheio de depoimentos emocionados da cantora enquanto se preparava para pegar o microfone e colocar tudo a tremer.

Capa do DVD “MARIA ALCINA – De Normal Bastam os Outros”, pela gravadora Nova Estação. Direção musical Rovilson Pascoal; direção de show/produção: Thiago Marques Luiz; direção, roteiro e montagem: Rafael Saar e Thiago Brito.

Maria Alcina (1949) nasceu e cresceu em Cataguases. Desde os dezesseis anos manteve-se vivamente ligada a movimentos culturais locais, especialmente pelo teatro e pela poesia. Sua família tinha forte relação com a música. Um irmão e o pai compunham a banda de uma fábrica, na qual Alcina chegou a trabalhar ainda na adolescência. A mãe também soltava a voz durante a lida diária em casa. Tudo isso pode estar na raiz do que veio a ser Maria Alcina alguns poucos anos mais tarde. Sua introdução ao mundo do estrelato, porém, se deu na cena carioca do início dos 1970. Dos clubes e casas de shows de Ipanema e Copacabana, Alcina conseguiu levar seu nome a todos os cantos do país por palcos, rádios e televisores a partir de sua participação enquanto intérprete no VII Festival Internacional da Canção Popular, de 1972.

Maria Alcina é campeã, “verdadeiro gol de placa”!!!

Essa história é bem conhecida por quem não baixou a guarda após o Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968 – que intensificou os mecanismos de repressão e censura do Estado autoritário sobre as manifestações públicas. Mas vale lembrar.

Na noite de 16 de setembro de 1972 a sétima edição do Festival Internacional da Canção Popular chegou à sua final com a premiação nacional da canção “Fio Maravilha”, de Jorge Ben, levada ao palco do Maracanãzinho e às telas ligadas na Globo (produtora do evento) na voz e na dança de Maria Alcina. 

A cantora, então com 23 anos, animou a plateia com uma performance frenética de sons e movimentos. Seu corpo de garota, muito magrinha e negra, o cabelo curtinho, entrava em cena trajando um figurino com toques de Ásia e Arábia misturados numa onda de tropicalidade.

Suas expressões faciais e gestos largos, remeteram a várias referências para os públicos. De cara, o tico-tico no fubá da Carmem Miranda. Também algumas contemporâneas suas, das vibrações experimentais de Vanusa e da presença cênica da sul-africana Miriam Makeba. Também os ares jocosos de Josephine Baker – a grande estrela de vaudeville estadunidense que estourou na Paris dos 1920. 

Altivas referências que atravessam o tempo e o espaço em influência gestual – direta ou indireta – na presença de Alcina. As imagens são (da esquerda à direita): Josephine Baker com seu figurino de bananas na Paris de 1927; Carmem Miranda na versão hollywoodiana da figura de “baiana”, nos idos dos 1940; Vanusa “por Vanusa” em show de lançamento em 1969; Miriam Makeba entre “Pata Pata” de 1956 e o prêmio em Cannes de 1959.

Temos aí alguns exemplos das encarnações ambíguas, provocantes e deslumbrantes da apropriação performática das expectativas coloniais dos europeus sobre o resto do mundo, disparos de frenesi para imaginários exoticizantes do entre guerras e do pós-guerra.

Além disso, episódios de experimentação musical, contestação ideológica e repressão dos mecanismos ditatoriais já vinham atando as histórias do tropicalismo, da política nacional, da música e cultura brasileiras, tendo ponto de convergência em palcos e transmissões de festivais, como os FIC desde 1967.

A edição do FIC de 1972 veio a ser a última, e vários artistas foram alvo da repressão durante o evento. Começou-se com o impedimento oficial do Governo contra a manutenção da cantora Nara Leão como presidenta do júri, pois consideravam incômodas algumas declarações recentes da artista sobre o Estado autoritário. 

Seguiu-se com a substituição de todos os demais membros do júri, que não foram complacentes, tendo expressado sua reação contrária à censura por meio de manifesto lido pelo psicanalista e escritor Roberto Freire, componente da formação original do júri. A brilhante “Serearei” de Hermeto Pascoal também foi impedida de ser performada, cortaram o microfone de Alaíde Costa, temendo a leitura de mais um manifesto crítico à censura do Governo. Tampouco o coro de porcos trazido por Pascoal ao Maracanãzinho pôde se apresentar. 

No entanto, o caso de Maria Alcina interpretando “Fio Maravilha” foi, a princípio, um verdadeiro gol de placa para as repercussões e controvérsias num período de turbulência da vida nacional. Jorge Ben levou o grande prêmio nacional do VII FIC, e o público recebeu com a maior animação, levando seus versos do show no Maracanãzinho para as arquibancadas do Maracanã. Isso porque a composição de Ben era uma homenagem alegre para o golaço aos 33 do segundo tempo que garantiu a vitória do Flamengo no Torneio Internacional de Futebol do Rio de Janeiro. O chute certeiro que fechou o placar em 1 a 0 contra o Benfica de Portugal, no dia 15 de janeiro de 1972, foi do atacante João Batista de Sales, conhecido pelo apelido de ‘fio maravilha’ – “Foi um gol de classe / Onde ele mostrou sua malícia e sua raça”.

Depois de ter dividido as decisões do júri com a forte indicação do prêmio à experimentação radical de Walter Franco intitulada “Cabeça”, a canção de BenJor foi a grande campeã do ‘torneio’ musical.

Maria Alcina, “além de louca, tem voz de homem”

Mas, tomando voz e corpo na atuação de Alcina, a sensibilidade duvidosa dos censores da ditadura ficou moralmente alardeada. Apesar do canto animado e imponente daquela jovem contralto, seus gestos vigorosos e amplo domínio do palco, as imaginações ditatoriais enxergavam principalmente uma presença andrógina nos meios populares, nas rádios e TVs, nos lares da ‘tradicional família brasileira’. Então, naquele estado de coisas, Alcina representava uma grande ameaça e precisava ser reprimida, impedida de ter sua voz “masculina” transmitida por 20 dias. Depois ela chegou a responder a um processo.

Segundo o diretor da Censura Federal na época, Rogério Nunes, “com base em dispositivos legais vigentes desde 1946, Maria Alcina portou-se de modo inconveniente em cena, fazendo gestos e usando expressões ofensivas ao decoro público”. E Alcina conta ainda que hoje entende como passou a ser relativamente evitada em determinadas produções logo após o episódio, mas que não se abateu, seguiu cantando, sendo “doida”. Diz ela sobre o repercussão de sua performance quando alcançou escala nacional:

“… até hoje causa impacto em várias situações, principalmente a parte sexual. As pessoas ainda perguntam se eu sou homem ou mulher. Não é só a questão da voz – a minha é bem peculiar, é de contralto, rara em mulheres -, tem toda a figura, o jeito de cantar. Não tem como, pareço uma cachoeira, não tem como frear. Eu sou muito doida!”

De acordo com o professor-pesquisador José Rodolfo Lopes da Silva (doutorando em Educação na Universidade Federal de Pelotas, RS), “É interessante pensarmos no surgimento da Maria Alcina, para o grande público, porque ela traz a ruptura de um modelo de feminilidade, mais distribuído e naturalizado naqueles anos. O país vivia uma ditadura civil-militar, a regulação e manutenção de valores conservadores eram também fortes investimentos do Estado e de outros setores. A reação das pessoas ao vê-la performar no Festival Internacional da Canção de 1972 instiga porque se divide: há desde euforia e encantamento até sinais de desaprovação. Ela foi até perseguida por seu comportamento, considerado subversivo para uma parcela da população, seja pelo seu jeito de ser, cantar ou vestir.”

O escritor, jornalista e ativista LGBT+ João Silvério Trevisan, em seu livro “Devassos no Paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade” (Editora Objetiva, 2018), oferece um extenso levantamento da história da homossexualidade no Brasil e resgata outros exemplos que desafiavam normas morais relativas às performances de gêneros e às expressões públicas das sexualidades. Esses cis-heteronormatividades que se baseiam na universalização e naturalização de si mesmas. Entre os vários exemplos destacados por Trevizan, muitos deles estiveram em contato nas cenas em que Alcina também circulava no início dos 1970: o compositor-cantor Caetano Veloso, o grupo teatral Dzi Croquettes e o cantor Ney Matogrosso.

A alegação de que Maria Alcina era uma mulher “louca” cantando com “voz de homem”, foi o respaldo para a imposição de interdito que a tirou do ar após a premiação no Festival de 1972. Porém, Alcina estava decididamente inserida numa cena noturna carioca, interpretando canções de respeitados compositores e canções tradicionais. Em 1971, no Teatro Copacabana, ocorrera o lançamento de Maria Alcina como estrela de destaque, ao lado do cantor paulista Tony Tornado (vencedor do Festival em 1970, com a canção soul “BR-3”), do grupo vocal negro Trio Ternura (com os irmãos Jhusara, Jurema e Robson) e da banda niteroiense MPB4 (composta por Miltinho, Magro, Aquiles e Rui Faria).

Perfil de Maria Alcina publicado na revista amiga TV TUDO, n.127, de 24 de outubro de 1972

Alcina enfrentou a reação ditatorial e suas consequências imediatas de uma maneira peculiar. Ainda em 1972, no bojo das polêmicas posteriores ao período em que sua voz estava proibida pelo Estado, a revista Amiga TV TUDO publicava seu perfil sob a seguinte chamada: “”Ela se considera a superstar tupiniquim e não se importa com críticas porque o importante é curtir”. Destacavam o modo como Alcina se apropriou da estética dos tempos áureos de Hollywood numa abordagem escrachada, extravagante e debochada. Indicavam seu novo status de “revelação” do VII FIC, e traziam algumas falas suas sobre como vinha vivendo a experiência do polêmico estrelato: “Outro dia falaram: olha só, além de louca, tem voz de homem. Adorei. Amei”.

Em 30 de setembro de 2014, a TV Cultura exibiu seu programa de entrevista Provocações com a convidada Maria Alcina. Já no início da conversa, o diretor teatral Antônio Abujamra a indagou: “Maria Alcina, a ditadura era só contra a sua voz, ou contra a sua irreverência?”. Ao que ela respondeu imediatamente: “A irreverência! É o jeitão, né?! Meu jeitão ali complicou o meio de campo, alok.”

Abujamra aprofundou a questão: “Algum sentido ideológico nisso?”. Alcina contestou com um “Não!” curto e, ficando mais séria, continuou: “Simplesmente eu fazia, eu cantava, me expressava com liberdade, numa boa!…” Quando o entrevistador a interrompeu com a afirmação de que “Tudo é ideológico”. 

Tudo também é contextual, adiciono. Vasculhando notas de jornais dos 1960 e 1970 com chamadas para os espetáculos musicais e cênicos de Copacabana e Ipanema, encontro várias estreias e reestreias de shows de shows de “transformistas”. Enquanto muita gente questionava se Alcina seria um homem cisgênero “vestido de mulher” ou uma mulher cisgenera “masculinizada”, produções já consolidadas nos programas das casas de show da Zona Sul ostentavam seus elencos de travestis.

Era o caso do musical “Les Girls”, lançado em 1965 e rapidamente apontado na imprensa como um dos melhores e mais luxuosos espetáculos da noite carioca. Idealizado por Hugo Freitas para animar o Stop Club e escrito por Meira…, “Les Girls” levava aos palcos as personas de Rogéria, Valéria, Marquesa, Nádia Kendall, Carmen e Brigitte de Búzios. Essas, contudo, não eram as primeiras, pois a genealogia desse tipo de performance pode ser remontada a um passado tão distante quanto o é a própria invenção do feminino e do masculino como essências ou identidades naturalmente estanques…

Fotografia do espetáculo “Les Girls” na Op Art, publicada em página dupla na revista Manchete de 9 de abril de 1966. O espetáculo nasceu então com roteiro de Mari o Meira Guimarães; criação musical de João Roberto Kelly; direção de Luís Haroldo e figurino de Viriato Ferreira.

O pesquisador e professor Luiz Morando (do curso de Letras no Centro Universitário de Belo Horizonte, Uni-BH) recupera os nomes de Darwin e Aymond, grandes artistas da performance drag nos anos 1920 e 1930; Ivaná, anos 1950; e a travesti Sophia Loren, no show “Vive les femmes!”, de 1961, dirigido por Carlos Machado. Morando menciona ainda que, por exemplo, em meio à efervescência de Copacabana naqueles anos, havia a Galeria Alaska como importante ponto de encontro, que “já em 1957, tinha um público boêmio diversificado constituído também por pessoas do segmento hoje dito LGBTQIA+”.

Embora Maria Alcina seja uma mulher cisgênera e heterossexual, sua voz e sua performance a associavam e ainda associam com identidades não-cis-heteronormativas. As apresentações de Maria Alcina com seu “jeitão”, lida como um ser andrôgino ou de gênero ambíguo, se arrasta desde o período inicial de sua projeção na esfera pública, em início dos 1970, até os dias atuais, conforme fica manifesto em conversa entre Alcina e a apresentadora Mariana Godoy (transmitida pela RedeTV em 11 de agosto de 2017). Transcrevo essa parte do diálogo:

M.Godoy – “Posso lhe confessar então que numa época, acho que minha pré-adolescência, eu olhava você e ficava na dúvida, é homem ou é mulher? Por causa desse vozeirão que você tem.”

M.Alcina – “Até agora perguntam, é verdade, se sou homem ou se sou mulher. Aí eu falo << nem eu sei!>>”.

M.Godoy – “Você se sente a rainha dos gays?”

M.Alcina – “Olha, eu sou muito querida por todos, e sempre fui, desde o começo, né? Aliás, no show que eu fiz agora, esse domingo, gritaram lá da plateia <<que veado é esse?!>> E eu falei <<É o meu novo show?>>.”

A presença de Maria Alcina nos meio de cultura e entretenimento, e a popularidade que sua figura encontrava, apesar dos intentos de apagamento do Estado autoritário, demonstram um aspecto positivo, de resistência e explosão potente da espontaneidade de várias performances de gênero que não correspondem à norma “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”.

Contudo, a repressão sobre os espetáculo de Maria Alcina nas rádios e TVs está diretamente associada ao que o pesquisador e professor de direito Renan Quinalha (da Universidade Federal de São Paulo, UNIFESP), identifica como “controle moral violento e repressivo direcionado aos grupos LGBT pelo aparato militar nos anos de chumbo” – de acordo com seu livro recém publicado Contra a moral e os bons costumes: A ditadura e a repressão à comunidade LGBT (2021, Companhia das Letras).

Três imagens do arquivo pessoal de Alcina que monstram diferentes figurinos/maquiagens usados por ela nos 1970

Alcina, com sua performance perturbadora das normativas binárias de gêneros feminino e masculino, não estava sozinha, encontrou na cena artística uma rede de apoio que contava com várias artistas cisgêneras, trans e travestis, bem como artistas cisgêneros que faziam drag. Considerando as transformações na visualidade de Alcina apenas na década de 1970, é possível identificar como uma influência mútua entre a cantora e a cena LGBT da época. Da encarnação debochada de uma diva hollywoodiana da primeira metade do século XX, que compunha a Maria Alcina do teatro de revista; depois as associações com a figura de Carmem Miranda pelo público dos Festivais; e, ano a ano, com o lançamento de seus LPs e compactos, vemos Alcina se aproximando nitidamente da cultura drag local, e esse caráter é até hoje predominante em sua montação de apresentação.

Nada ingênua quanto ao papel central de sua performance, Maria Alcina encontrou seu caminho de maneira bastante singular. Um “jeitão” repleto de um sarcasmo leve e de um fascínio pela mise-en-scène dessa persona que perturba o normal, o óbvio, o imposto e o estrutural. Ela toma para si o lugar de sempre nos confundir, e o faz com enorme carisma. Isso já vinha das experiência em palcos de Cataguases e pelos festivais de Minas, mas tomou uma força explosiva no palco da casa Number One, em Copacabana, que contava com a atuação profissional de figurinistas e maquiadores importantes também para a produção teatral e cinematográfica da época – a saber, Stênio Pereira, Carlinhos Prieto e Echio Reis, entre outros.

De alguma forma, Alcina se apropriou desse lugar da ambiguidade e potencializou os ruídos de sua performance. O desconforto moral e as reações repressivas daquele período suscitados por seu comportamento foram convertidos rapidamente em uma espécie de alvo espontâneo da personagem que Maria Alcina passava a significar cada vez com mais empenho e radicalidade. Ela se apropriou daquilo que usavam para deslegitimá-la, a ambiguidade entre os estereótipos de masculinidade e feminilidade, e levou sua alegria para o alto, para todas as telas. E ao redor de Alcina, a militância LGBT também encontra espaço para expressar sua luta.

À esquerda, foto do programa Ritmo Brasil, da Rede TV, quando Maria Alcina compôs o grupo de convidadas para a comemoração especial do Dia Internacional da Mulher, junto da apresentadora Faa Morena, as drag queens Salete Campari e Silvetty Montila, e a cantora Adrhyana Rhibeiro. À direita, retrato performático de Alcina nos 1970, vestida de uma forma que não deve nada aos outfit extravagantes de Lady Gaga.

Não é à toa que Alcina atualmente figura como a “avó de Pablo Vittar” ou a “Lady Gaga das antigas”, ela é um ícone LGBT, e o é no sentido performático do empoderamento, encontrando leveza e conforto para ser quem se é. Ela encontrou sua forma de resplandecer, por brio e deleite. Assim como Elke Maravilha, Edy Star, Ney Matogrosso, Secos e Molhados, Lennie Dale, o dublador Pablo de Qual é a Música?, Jorge Lafond, Claudia Wonder, Lorna Washington e tantas outras figuras performers de si que bagunçaram as divisórias do que é homem ou mulher, do que é “normal”.

O exemplo mais icônico disso foi sua participação como destaque de um dos carros alegóricos da Beija-Flor de Nilópolis, no desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro em 1976. Até então, a escola da Baixada Fluminense era relativamente inexpressiva, mas, naquele ano, essa posição parecia fadada a se alterar. O carnavalesco Joãozinho Trinta, depois de garantir a vitória da escola tijucana do Salgueiro em dois anos seguidos (1974 e 1975), se encaminhou para as produções da Beija-Flor. Criou então a letra de “Sonhar com rei dá leão”, e o refrão que colou na cabeça de muita gente naquele carnaval: “Sonhar com filharada é o coelhinho/ Com gente teimosa na cabeça dá burrinho/ E com rapaz todo enfeitado,/ O resultado, pessoal, é pavão ou é veado”.

O samba-enredo em questão foi uma homenagem a Natal da Portela, o lendário bicheiro de um braço só que reinou em Madureira até os anos 1970 e foi o primeiro contraventor a se envolver com uma escola de samba. Cada carro representava um dos bichos do jogo. Alcina veio sobre o alto pedestal em forma de águia, com plumas brancas e azuis, representando o animal da casa 24, o veado. Sobre a cabeça, os enormes chifres definindo uma nova faceta da personagem, a menina apelidada de “Índia Poti” por Chacrinha em seu cassino televisivo.

Na foto da capa do disco de sambas-enredos das escolas de samba do grupo 1 do carnaval carioca, a destaque da campeã de 1976, Beija-Flor, Maria Alcina, fantasiada de veado.

A Beija-Flor foi a grande campeã naquele ano. No ano seguinte, o LP com os sambas-enredos do Carnaval carioca trazia a figura altiva e alegre de Maria Alcina, a “mulher veado”, na casa 24 do jogo do bicho. Conversando com um grande fã de Alcina, Eduardo Brigolini (dentista juiz-forano, 56) rememora o impacto da visão de Alcina no desfile da Beija-Flor: “Surgia então o carro do veado e nele, Maria Alcina de veado. A mulher veado. Maria Alcina consegue impactar dentro do impacto, que foi aquele desfile! A imagem dela de veado é inesquecível pra toda uma geração que vivia o carnaval carioca através da TV, revistas e jornais. Foi muita coisa que aquela mulher veado representou: uma transformação na estética dos desfiles, uma mulher vestida de veado, num país que a imagem do veado significa homossexuais masculinos. E esta mulher com trejeitos e gestual de travesti. A ditadura militar no meio disto tudo…”

No mesmo ano, ela aparece na TV Globo em programa homenageando o Gonzagão, canta com gosto os versos da composição “Paraíba masculina / Muié macho, sim sinhô”. E, como nada basta para Alcina, no ano seguinte ela se montou do contrário, tendo gravado o hino do Sport Club Corinthians Paulista e a canção “Transplante de Corintiano”, Alcina se vestiu de jogador de futebol para posar na capa do disco, a maquiagem de drag bem carregada, o cabelo curtinho e de chuteira no pé.

À esquerda: Capa do disco compacto com as faixas “Hino do Corintians” e “Transplante Corintiano” interpretadas por Maria Alcina, com participação especial do locutor esportivo Osmar Santos. Pela gravadora EMI-Odeon, lançado em 1977. / À direita: Capa do disco de Maria Alcina pela gravadora Copacabana, de 1981, com as faixas “Doida, Bonita e Gostosa” (por Jorge Alfredo e Chico Evangelista) e “O Aperto” (por Bráulio de Castro).

Em 1981, ao lançar mais um disco, Alcina aparece com o colo e os ombros nus, metade do cabelo imita a diva Vanusa com seu chanel loirinho e bem escovado, além de uma maquiagem pesada de himmel, sombra, blush e batom; enquanto a outra metade da cabeça apresenta um cabelo raspadinho na máquina. Ela nos encara de novo, na iminência de dar a maior gargalhada na nossa cara!

Se você leu tudo até aqui, gostou e quer mais, fique atento para a publicação das partes 2 e 3 da reportagem Repensando o Brasil na Voz de Maria Alcina, nas quais vou enfocar a trajetória da artista em dois eixos: a Maria Alcina de forte verve experimental, do Poema/Processo em Cataguases ao “Espírito de Tudo”, seu último álbum com canções de Caetano Veloso (parte 2); e a Maria Alcina cara de pau da cultura popular, do teatro de revista ao programas de auditório, como o “Cassino do Chacrinha” e o “Qual é a Música?”… e muito mais dessa personagem cheia de vida. Sinta-se livre para compartilhar suas lembranças sobre Alcina!