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A Semana de Arte de 1922 e a injusta exclusão dos artistas negros

Lima Barreto (Arte: taglivros.com)

Ao celebrar centenário do que é considerado, por muitos, o maior evento de arte no Brasil, revemos o mesmo sobre uma nova ótica a partir das mudanças ocorridas em toda a sociedade, um século depois. A Semana de Arte Moderna de1922 aconteceu em São Paulo, patrocinada pela economia em desenvolvimento do café.

Realizado a apenas trinta e quatro anos após a abolição da escravatura, é preciso olhar sobre a perspectiva que o país acabava de sair do período ainda colonial enquanto o restante do mundo já abraçava o modernismo. E a elite, que majoritariamente era constituída de ex-senhores de escravizados, ia beber de fontes europeias em seus costumes, pois tinham como parâmetro de nação civilizada os moldes estrangeiros.

E que, anos antes, financiava a vinda de trabalhadores europeus para integrar a mão de obra assalariada aqui no Brasil como forma de resolver o que chamavam de problema, que era a imensa população de ex-escravizados. Porque não acharam solução para integrá-los à sociedade como trabalhadores formais, relegando essa população à miséria nas periferias das cidades. Além disso, a imigração europeia serviu aos interesses fundamentais do racismo, o de embranquecimento da população brasileira.

Por isso, os acontecimentos nas artes que influenciam e são resultado direto das relações sociais nas primeiras décadas do século XX, principalmente a Semana de Arte Moderna de 1922, um século depois, precisam ser observados sobre outro prisma, o da construção racista do Brasil.

O ano de 1922 foi marcado por acontecimentos que vão fazer história, como a fundação do Partido Comunista do Brasil, o PCB. Também o Movimento Tenentista que ficou conhecido como a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana. E ainda, comemorava-se o centenário da independência do Brasil. Em meio a essa efervescência social, a Semana de Arte Moderna se autointitulava um evento que visava de romper com o academicismo que influenciava as artes, apresentar temas brasileiros e modernizar as artes.

Mas, apesar de efetivamente não ter tido uma repercussão grandiosa na época, a Semana de 1922 deve ser vista como realmente foi construída, dentro de um contexto burguês e elitista, feita por e para os herdeiros da elite agrária, cujos antepassados estavam diretamente ligados ao período escravagista. E que, na verdade, repudiavam tudo o que não fosse branco e não remetesse aos ideais de visão de mundo europeus.

Sob o pretexto de alavancar finalmente o país para o século XX, era preciso apagar o que eles consideravam a mácula da sociedade brasileira: a grande massa de pessoas negras, mestiças e indígenas. Assim, como parte de um projeto civilizatório, com viés classista e racista, foi realizado um evento apenas para um seleto grupo de ricos e brancos, não inserindo os artistas negros, nem os chamados mestiços. O que por si só era contraditório, pois se dizia uma ocasião para mostrar a arte brasileira.

Um dos mais explícitos questionamentos que deve ser feito é o exemplo de Lima Barreto, um dos maiores escritores nacionais. Sob o pretexto de um conflito existente, por uma crítica aberta escrita por Lima Barreto aos autodeclarados futuristas paulistanos, este não esteve presente, nem na Semana de 1922, nem contexto modernista daquela época. Em resposta, os paulistas publicam um texto, sem assinatura, chamando-o de “escritor de bairro”, entre outras ofensas, demonstrando a visão preconceituosa.

Além disso, Mário de Andrade, quando escreve uma reflexão sobre a Semana de Arte Moderna, por ocasião da comemoração do seu 20° aniversário, reconhece que os paulistanos não conheciam outros nomes do movimento no Rio de Janeiro. De forma contundente, corrige esse erro citando Nestor Vitor e Adelino Magalhães como precursores do movimento no Rio, mas não Lima Barreto.

Lino Guedes foi outro autor que não foi merecedor de integrar a cúpula do evento modernista. Este tinha uma escrita vinculada à luta contra o preconceito racial e rompia com os moldes literários do século XIX, que diziam ser a proposta do movimento, ainda assim não participou da Semana de 1922.

Outro nome que passou ao longe do acontecimento foi Pinxinguinha. Exemplo do preconceito e exclusão classista que acontecia nesse período com a música socialmente marginalizada que era o samba. O estilo era majoritariamente interpretado por descentemente de escravizados e tem em Pixinguinha um de seus principais artistas, que impulsiona o samba para o mundo. Sua música trazia uma variedade rítmica das religiões de matriz afro-brasileiras, o que era inaceitável pela elite que queria mostrar o Brasil com uma cara civilizada.

No período dos anos 1920, Pixinguinha e o grupo Oito Batutas, saem em turnê em Paris, obviamente sendo alvo de críticas por parte da aristocracia brasileira racista que não poderia se sentir representada e nem admitir a apresentação de músicos brasileiros negros na “Cidade das Luzes”. Também não foram considerados os nomes de músicos como Donga e João da Baiana. Quem foi recebido nos salões da Semana de 1922 foi Heitor Villa-Lobos.

As formas de sobrevivências e sociabilizações no final do século XIX e início do século XX ocorrem de forma cruel e desigual para os descendentes dos escravizados, ainda assim a genialidade e riqueza de suas criações aconteciam à revelia dos desejos dos herdeiros de ex-senhores de escravizados, que não poupavam esforços para ocultá-los.

A expressão artística e a identidade cultural do povo brasileiro devem muito às origens africanas e indígenas. É preciso refletir se agora será feita justiça aos artistas, autores e músicos negros, indígenas e mulheres, que não estiveram presente na Semana de 1922 devido ao viés racista e elitista do evento, com a apresentação de suas obras em escolas, exposições, galerias e universidades.