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O racismo, o antissemitismo, a apologia ao nazismo e a naturalização do absurdo

Pichações foram repudiadas pela Prefeitura e pela Câmara de Juiz de Fora (Foto: Leonardo Costa)

O muro aos fundos da Igreja do Cenáculo São João Evangelista, na Avenida Presidente Itamar Franco quase esquina com a Avenida Rio Branco, apareceu com a pichação de um símbolo nazista ainda no ano passado. Ao lado, uma frase desconexa com a assinatura “poder branco”.

As pessoas seguiram passando por ali. Dia após dia. Nesta semana, no prolongamento do mesmo muro, foram escritas frases racistas, com discurso de ódio contra judeus. E por lá seguem passando as pessoas.

A Prefeitura de Juiz de Fora emitiu nota de indignação e veemente repúdio às pichações. A vereadora Tallia Sobral (PSOL), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal, também repudiou o episódio definido como inaceitável. Ela cobrou apuração do caso e punição aos envolvidos.

A reação dos poderes Executivo e Legislativo de Juiz de Fora contrária ao racismo, ao ódio contra judeus e à apologia ao nazismo confronta o processo de naturalização do absurdo. Esse fenômeno foi identificado pelo professor de História Contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Odilon Caldeira Neto, que também é pesquisador do Observatório da Extrema Direita.

“O elemento da naturalização do discurso da extrema direita passa também pelo processo de naturalização do absurdo. E a naturalização do absurdo aqui deve ser lida como uma naturalização de crimes contra a humanidade, o descrédito dos direitos humanos. É a naturalização da barbárie”.

Para ele, esse discurso da extrema direita, que se vale de símbolos, expressões e dizeres nazistas, fascistas ou mesmo integralistas, é sintoma de um processo global, com manifestações mais intensas em algumas localidades, caso do Brasil.

“Isso tem uma relação com a conjuntura política brasileira. Nos últimos anos, ao longo do governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), criou-se aqui um longo processo de naturalização de discursos da extrema direita global. Foi a incorporação de agendas da extrema direita global à realidade brasileira”.

Há ainda um processo de comemoração das tradições históricas da extrema direita, seja ela brasileira ou não. No caso do integralismo brasileiro, segundo Odilon Neto, é possível averiguar a ocorrência de diversas comemorações, seja de grupelhos tipicamente integralistas ou neointegralistas. “A utilização do lema ‘Deus Pátria e Família’ é um indicativo nesse sentido”.

Quanto à apologia ao nazismo, como a pichação em Juiz de Fora, o professor chama atenção para a existência de acenos a elementos do nacional socialismo no governo Bolsonaro. Ele cita o caso do então Secretário de Cultura, Roberto Alvina, que plagiou trechos de um discurso do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels. “Mas ele não é um caso isolado. É possível ver algumas comemorações, alguns acenos às posições e às expressões mais extremadas da extrema direita no governo Bolsonaro”.

De uma forma mais ampla, Odilon Neto observa uma relação ou até certo impulsionamento desse fenômeno pelas chamadas crises das democracias no mundo, com a emergência de novos populismos de direita. “Isso se manifesta de uma maneira mais radical ainda no Brasil. É a manifestação de uma erosão democrática em nível local e global”.

Essas crises das democracias e o avanço dos populismos de direita, segundo o professor, criaram uma espécie de janela de oportunidade para grupelhos de orientação neonazista, neofascista ou mesmo neointegralista que existem há décadas no Brasil. “Ao longo da transição democrática eles já existiam. Ao longo da chamada Nova República, eles continuaram existindo. Mas, é claro, com outras intensidades e com outras capacidades políticas”.

O problema, alerta o pesquisador do Observatório de Extrema Direita, é que, à medida que o discurso da direita extremada é naturalizado no cotidiano político brasileiro, incorporando expressões e símbolos de campos neofascistas ou neonazistas, tudo isso acaba também assimilado pelo processo de naturalização.

Outra questão levantada por Odilon Neto envolve a diversificação do movimento extremista. Se for pensar o radicalismo militar, por exemplo, que tem um grande funcionamento ao longo da ditadura civil-militar brasileira, trata-se apenas de um dos elementos “dessa grande miríade da extrema direita brasileira”.

“É evidente que a extrema direita brasileira não pode ser compreendida apenas como um processo de comemoração do nazismo, do fascismo e particularmente do integralismo, assim como não pode ser entendida como um processo de comemoração exclusivamente da ditadura”.

Para ele, as feições diversificadas da extrema direita são impulsionadas pelo o que considera como “o grande apogeu da direita radical e da ultradireita no Brasil e no mundo”. Isso se deve, entre outros fatores, às possibilidades de novas estratégias, aos novos meios de comunicação, com novas e intensas relações dos partidos populistas de direita radical pelo mundo.

Com esse cenário, segundo o professor, abriu-se “os portões da barbárie, os portões de posicionamentos e proposições políticas que são absolutamente contrárias a qualquer prática democrática e que acabam sendo absolutamente tomados como pontos de normalidade ou de comemoração na atualidade brasileira”.

É esse processo, como Explica Odilon Neto, que cria uma tolerância para aquilo que deve ser intolerável. “As práticas políticas intolerantes, as premissas políticas intolerantes devem ser tomadas como intolerantes e tratadas de uma maneira também intolerante. É o paradoxo da tolerância: não podemos tolerar o intolerável”.

Isso acontece, continua o professor, quando há acenos à violência contra grupos minoritários ou à violência política contra opositores políticos. Também quando há disseminação de uma visão de mundo onde os indivíduos são tratados não como semelhantes em suas diferenças, mas como inimigos. “Aí a gente tem um processo de naturalização de ideias fascistas na sociedade brasileira”.

Mas como conter esses processos? Primeiramente, Odilon Neto recomenda acionar sempre os mecanismos jurídicos existentes. Depois, ele defende a necessidade de fortalecimento de uma cultura política democrática, inclusive em torno de processos educacionais.

“À medida que a gente observa um processo de comemoração da ditadura, comemoração do golpe, comemoração do nazismo, é necessário pensar como combater e como dirimir os modos e os mecanismos de atuação. Nisso me parece que existe a necessidade de um pacto coletivo da sociedade brasileira ou então daqueles indivíduos que veem a necessidade de pertinência democrática. A democracia nesse sentido deve ser salvaguardada, ser impulsionada e ser intensificada para dirimir o avanço desses discursos extremistas antidemocráticos intolerantes”.