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Justiça por Moïse: quando a xenofobia e o racismo flertam com a barbárie

Em protesto no Rio, manifestantes pedem justiça por morte de Moïse em ato que reuniu familiares do congolês e defensores de direitos humanos (Tomaz Silva/Agência Brasil)

Um ato de selvageria torpe e brutal trouxe comoção, indignação e revolta a milhares de brasileiros nestes últimos dias. O assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe configura mais um episódio do que significa ser negro e morar no Brasil. O jovem de 24 anos teve pés e mãos amarradas e, de forma cruel e covarde, foi torturado e espancado por três homens até a morte.  Motivo?  Reivindicar o salário que lhe era devido pelas horas de trabalho em um estabelecimento comercial. Trata-se de mais uma expressão inaceitável de racismo e xenofobia contra imigrantes africanos aos quais se somam também venezuelanos, haitianos, bolivianos e outros.

Moïse e seus irmãos deixaram a República Democrática do Congo em 2011 com o propósito de se livrarem da violência, da miséria e da falta de oportunidades vivenciadas em sua terra natal. Com a esperança de que, aqui no Brasil, poderiam construir um novo lugar, uma nova morada. Não sabiam, decerto, como são tratadas as pessoas negras neste miserável território. Deveriam ter imaginado uma terra de oportunidades, de povo hospitaleiro, habituado a diversidade de culturas, cuja a ancestralidade africana faria daqui uma nação cordial aos filhos da mãe África.

Não imaginaram, logo no Brasil, país reconhecido pela ONU como berço de acolhida a refugiados e imigrantes de todo mundo, que assistiriam um irmão, um filho, sofrer literalmente na pele o preço pago por ser trabalhador, preto e pobre nestes confins. Por ousar incomodar o patrão, requisitando o ordenado que lhe era devido pelo seu labor, Moïse perdeu a vida.

O triste episódio se junta a um repositório de atrocidades recorrentes e nos remete a um passado que rompe gerações e permanece vicejante em nossa sociedade, pautada sob a égide do patriarcado escravagista, com seus alicerces enrijecidos sob uma cultura racista que alimenta sistematicamente toda ordem de violência contra os corpos negros:  social, cultural, política, econômica e educacional. A inépcia do Estado em mover-se de maneira contundente contra as condições desumanas a que são submetidas a grande maioria da população negra e também imigrante desse país se reproduz em todos os cantos, da periferia ao centro, do campo a cidade, das favelas aos condomínios de luxo.

A xenofobia e o racismo transformam-se assim na mais cruel manifestação de desamor ao próximo, desaparece qualquer sentimento de compaixão e resta só o desprezo pela vida alheia que passa a não valer nada. Implica em rebaixar a condição humana ao nível máximo de deformidade. O rapaz foi espancado e torturado até a morte, no meio da noite, por vinte minutos, sob às vistas das pessoas, simplesmente porque teve a “petulância” de cobrar aquilo que lhe era de direito: os dias trabalhados no quiosque Tropicália, na Barra da tijuca, Rio de Janeiro.

Nas instâncias legais, quando a questão envolve pessoas pretas e pobres, é sabido qual o trato devido pelas autoridades às vítimas de racismo e discriminação: a elas são dispensadas a indiferença, a desconfiança e o pouco caso ao seu sofrimento. O contrário é contraproducente: dentro de uma sociedade racista espera-se sempre o negro como o autor e não como a vítima. Daí a coisa muda. A autoria carrega consigo o estigma, o preconceito e a marginalização sistemática. O abuso de poder, a truculência, o desrespeito e a intolerância viram a regra, o preto é sempre o suspeito e, em não raros casos, a sentença é a morte e o tribunal é de rua. Destarte, de uma forma ou de outra, são os corpos negros os mais dilacerados pela violência física, psicológica e moral, sejam eles de um africano, brasileiro ou latino-americano.

Quanto à justiça, sabemos tratar-se de uma justiça que via de regra discrimina, parcializa, encarcera em massa a população negra. De uma justiça branca e elitista, composta em sua maioria de privilegiados das camadas média e média alta. Uma justiça por vezes indiferente à condição de vida do povo afrodescendente, das populações indígenas, das camadas empobrecidas e carentes de respaldo jurídico para garantir o mínimo de direitos. A família congolesa agora clama por ela, por uma investigação séria que leve os responsáveis a pagar pelo crime hediondo cometido contra a vida de ente querido. É urgente uma mobilização coletiva de várias frentes, uma rede de solidariedade à família neste momento para que não passe impune essa brutalidade.

Me sinto envergonhado e expresso as mais sinceras condolências à família do jovem Moïse. Aproveito essas linhas para pedir perdão a vocês como brasileiro. Estamos descendo ao mais baixo nível de civilidade ou sua completa ausência, movidos sob os auspícios do ódio, da intolerância, da insanidade e da barbárie. Saíram de sua terra natal, marcada por um longo período de submissão ao imperialismo belga e com uma história exaltante de luta pela liberdade. Infelizmente, os constantes conflitos étnicos deixaram um rastro de sangue e medo em seu país, levando muitos congoleses buscarem refúgio em outras nações. Moïse e seus irmãos chegaram aqui há dez anos e aprenderam a amar a terra que agora os fazem cair em luto da maneira mais triste e revoltante. A fagulha de esperança numa terra livre e com trabalho esvaiu-se de vez.

O jovem Moïse era um trabalhador que, como milhares de brasileiros e imigrantes, sobrevivia de serviços esporádicos, submetido ao subemprego e ao trabalho precarizado. Nunca havia exercido uma profissão com emprego estabilizado, com registro em carteira. Todavia, gostava desse país, do Rio de Janeiro. Amava futebol, era rubro-negro. Cuidava da mãe com carinho. Estava prestes a conseguir a nacionalidade brasileira. O rapaz, imigrante africano, “era feito aquela gente honesta, boa e comovida”, como outrora cantou em prosa Belchior, que teve seu destino interrompido a pauladas no lugar que escolhera pensando em vencer na vida. Justiça seja feita, que a família de Moïse, sua mãe e irmãos, não fiquem ainda mais desolados frente à morosidade da investigação e a impunidade recorrente em casos de assassinados de pessoas negras.