Há 100 anos ocorria a Semana de Arte Moderna.
Pode-se aproveitar a comemoração para se estudar a assimilação do modernismo brasileiro pelos artistas e pela população em geral de 1922 em diante.
Nesta linha, Luiz Ruffato, nosso grande escritor, acaba de publicar um interessante livro sobre os Verdes, grupo de cataguasenses que alguns anos depois do evento fundaram revista e mantiveram interlocução com Mário e Osvald de Andrade.
O primeiro capítulo do livro enuncia seu propósito: colocar por terra a tese de que o modernismo em Cataguases, na literatura com os Verdes e, de certa forma, no cinema com Humberto Mauro, seja um fenômeno inexplicável, algo decorrente da “Providência Divina”, como sugeriu Tristão de Athayde em artigo publicado em 1929.
Não vou trazer spoilers de suas conclusões: leiam “A Revista Verde de Cataguases: contribuição à história do modernismo”, do Ruffato, obra importantíssima.
Mas enquanto lia seu livro, ficava me perguntando: por que não em Juiz de Fora?
E dela decorriam outras questões.
Será que a população de Juiz de Fora, uma das mais ilustradas de Minas Gerais, não estava acompanhando a “Semana de Arte Moderna”?
Onde estavam os poetas juiz-foranos? Nenhum deles direta ou indiretamente participou do movimento? Havia alguma pintora que já esboçasse traços modernistas em suas telas? Escultores e músicos havia?
Como qualquer movimento, a Semana de Arte Moderna teve suas lideranças, capazes de aproximar de si e congregar pessoas com interesses comuns, como foram Osvald e Mário de Andrade, Anita Mafaltti, Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, coadjuvados pelo mecenas e articulador político, Paulo Prado, e o padrinho literário do movimento, Graça Aranha.
Por isso, começamos a investigar como Juiz de Fora reagiu a Semana de Arte Moderna procurando suas lideranças artísticas da época.
Impossível não pensar, de cara, em Pedro Nava e Murilo Mendes, mas o primeiro com pouco menos, o outro com um pouco mais de 20 anos, nem estavam na cidade.
Nava se preparava para ser médico em Belo Horizonte e Mendes, no Rio, acabara de conhecer Ismael Nery, grande amigo e que lhe estimularia na vida e nas artes.
A procura continua pelos artistas genuinamente locais, dos quais são bons exemplos os “imortais”da Academia Mineira de Letras, criada na cidade em 1909 e transferida para a capital mineira em 1915, mas que aqui residiam.
Duas figuras ganham destaque: Lindolfo Gomes, um dos criadores do hino de Juiz de Fora, e Belmiro Braga, o poeta a quem Nava reverencia em Balão Cativo e Mendes o aponta como seu padrinho literário.
Em 1918, Lindolfo Gomes publicou um livro que mostra toda sua faceta de ensaísta e folclorista “Contos Populares Brasileiros”, o que poderia o aproximar as preocupações dos modernistas de 1922 com uma cultura nacional, porém, ele nunca abandou uma poesia erudita e de estilo clássico, como se percebe no seu soneto “Língua Portuguesa” (Amo-te, ó minha Língua Portuguesa, / Doce, maviosa, rica e feiticeira, / De todas do universo és a primeira, / Que nenhuma haverá de mais beleza …”).
Belmiro Braga, por sua vez, embora fosse um poeta popular na cidade, com versos que eram conhecidos por seus concidadãos e concidadãs, não se entusiasmara com o modernismo e se admitia velho para mudar de estilo, na precisa observação de Marcus Vinícius de Freitas em seu ensaio “Humor na poesia de Belmiro Braga”.
No prefácio de seu último livro, Redondilhas, de 1934, Belmiro acusa os futuristas, os modernistas então, de o terem obrigado a “cerrar as portas e a recolher, como alcaides e refugos” os seus “pobres sonetos, quadras e sextilhas…”. Estava surpreendido que um editor ainda publicasse livro no estilo em que ele escrevia.
Se não houve a liderança possível destes dois escritores relevantes, também não se a teve em outros intelectuais e escritores como Albino Esteves, Machado Sobrinho e Dilermando Cruz, todos eles também membros da Academia Mineira de Letras e todos eles escrevendo sob a antiga forma de sonetos, por exemplo.
Machado Sobrinho, o grande idealizador e responsável pela fundação da Academia Mineira de Letras, em Juiz de Fora, na edição do Correio de Minas, de 2 de agosto de 1917, assina crônica com o título de “Pela Arte Pura”, revelando-se “franco partidário da sinérese do verso, não nos conformamos com a doutrina que não estabelece critério algum sobre o magno assunto, e proclama o princípio acomodatício de liberdade discricionária”.
A elite intelectual local ainda se prendia a uma prosa e poesia nos moldes das tradições parnasianas e simbolistas, sobretudo com versos metrificados, aqueles que eram de poemas, e com temas clássicos na prosa vertida.
Ainda, folheando edições do jornal mais antigo de Minas Gerais, o Pharol, publicadas nos dias em que a Semana de Arte Moderna transcorreu, não houve qualquer menção a ela.
Todavia, discutiu-se muito as cartas falsas atribuídas a Ruy Barbosa pela imprensa niilista, partidária de Nilo Peçanha, que perdera a eleição presidencial para Arthur Bernardes.
Ou seja: os temas nacionais de importância para a população da cidade tinham espaço jornalístico, o que sugere que juiz-foranos e juiz-foranas estavam longe de se preocupar com a Semana de 1922, como longe da cidade estavam nossos poetas modernistas.
É que, embora a sociedade juiz-forana fosse em algum grau ilustrada, apresentava uma polarização bem percebida por Pedro Nava, que relata em seu “Baú de Ossos”, aludindo a como ela era na primeira década do século XX, que, enquanto à margem esquerda da Halfeld estava o lado” revolucionário, irreverente, oposicionista, censurante e contraditor”, à margem direita, indo em direção ao Alto dos Passos, estava o lado “conservador, devoto, governista, elogiador e apoiante””.
E aí vem a calhar um fato que cita Paulino de Oliveira, em sua “História de Juiz de Fora”: em 1921 o Conde D’Eu e Pedro de Alcântara e Orleans e Bragança estiveram na cidade, quando Alfredo Lage empreendia esforços para aumentar o acervo da época imperial do Museu Mariano Procópio. Estaria a cidade no fundo saudosista de velhas tradições políticas e artísticas?
Sobre este ponto, deve-se lembrar de que Wilson Cid, em seu delicioso livro “À margem do Paraibuna”, anota que os historiadores ficam perplexos em constatar como Juiz de Fora abraçara a República em 1889.
Isso porque era grande a popularidade de Dom Pedro II, que só não visitava mais Juiz de Fora que Petrópolis no Brasil, numa aproximação afetiva que redundava em melhorias locais feitas por Mariano Procópio e Henrique Halfeld, tidos em alta conta na Corte, e em protagonismo político, com a concessão de 28 títulos de barões e viscondes para residentes na cidade.
Mesmo não se podendo afirmar que o saudosismo de parte da população local resultava em cultuar valores incompatíveis com os do modernismo artístico, é possível cogitar alguma oposição ao movimento, declarada ou não.
Podemos avançar um pouco no tempo e chegar a 1924, quando, entre os dias 15 e 30 de abril, na intitulada “Viagem de Descoberta ao Brasil”, Osvald e Mário de Andrade, Tarsila, o jornalista René Thioller, o jurista Gofredo Telles Júnior, Olívia Guedes Penteado e o poeta francês Blaise Cendras, passaram por várias cidades mineiras, entre as quais Juiz de Fora.
Mais uma vez menção não há de algum encontro ou evento relevante. Não se sabe por quanto tempo aqui ficaram, se com alguém falaram …
Ao que parece continua o movimento sem interlocutores na cidade, embora Otto Lara Resende cite que Pedro Nava se encontrou com Mario de Andrade em Belo Horizonte durante essa viagem.
No dia 19 de junho de 1924, Graça Aranha, um entusiasta de primeira hora da Semana de Arte Moderna, proferiu contundente discurso, “O espírito moderno”, uma “declaração de guerra ao passadismo”, segundo Ruy Castro, e que se transformou num libelo contra aqueles seus pares na Academia Brasileira de Letras, julgados por ele “helenos e naturalistas”.
Graça Aranha chegou a dizer que “a fundação da Academia foi um equívoco e foi um erro”, que os membros eram “excessivamente quarenta imortais, consagração exagerada para tão pequena literatura” e, tachando a ABL como uma “reunião de espectros”, “um túmulo de múmias” e “um império de todas as velhices”, fulminou: “Se a Academia não se renova, morra a Academia”.
Os modernistas presentes entoaram um “Morra” e se ouviu um “Morra a Grécia”. Os acadêmicos rotulados de múmias gritaram vivas à ABL.
O desfecho foi inusitado: Alceu de Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, e Augusto Frederico Schmidt puseram Graça Aranha nos ombros e desfilaram triunfantes pelo salão, enquanto os irmãos Rafael e Marques Ribeiro, partidários da ABL, levantaram Coelho Neto, que bradava: “eu sou o último dos helenos! Eu sou o último dos helenos”.
Alguns meses depois da passagem dos modernistas por Juiz de Fora, em 1925,o Granbery, que tinha um Grêmio Literário com o nome de Coelho Neto, “o último dos helenos”, prestava homenagem a ele, logo ele, que era duramente criticado pelos modernistas por ser considerado representante máximo das tradições artísticas do passado.
Ele esteve em Juiz de Fora, assim como alguns membros do Grêmio com ele estiveram no Rio de Janeiro.
Avançamos mais um pouco e, em 1927, surgiu o movimento Verde, em Cataguases, capitaneado por Ascânio Lopes e Rosário Fusco, com duas lideranças culturais mais facilmente identificadas, sem desconsiderar a participação de Henrique de Resende, Antônio Martins Mendes, Christoforo Fonte-Bôa – que viria a ser membro da Academia de Letras de Juiz de Fora e redator do “Diário Mercantil” -, Oswaldo Abritta, Guilherme César da Silva, Camilo Soares de Figuereido Júnior e Francisco Inácio Peixoto.
Luiz Ruffato conta que os verdes de Cataguases, esperaram a participação de autores de Juiz de Fora, sem citar quem seriam. Seriam Belmiro Braga, Lindolfo Gomes e outros residentes na cidade ou aqueles expatriados que ensaiavam primeiros textos em verso e prosa?
Pedro Nava, que já andava com a turma de Belo Horizonte, toda ela reticente com o movimento modernista, teve publicado um de seus raros poemas, “Nem tudo são flores” numa edição da Revista Verde.
Em outra edição, critica-se fortemente um poeta juiz-forano, Austen Amaro, com seu polêmico “Juiz de Fora, poema lyrico”, de 1926, um poeta que tinha intenções modernistas, mas ainda se via preso a inspirações românticas e pretensamente místicas.
E na mesma revista ainda se critica uma obra de outro poeta juiz-forano, Roberto Gil.
Ausentes as características específicas de Cataguases, Juiz de Fora, para ficar com os versos de Manuel Bandeira, colhe-se dela a impressão poética de que Juiz de Fora era “tão de dentro deste Brasil! / Tão docemente provinciana”.
Isso está em seu poema conhecido, publicado em seu livro “Estrela da Manhã”, de 1934, uma declaração de amor à cidade na proporção de como a cidade lhe parecia.
Os estudos historiográficos apontam que Juiz de Fora perdeu muito protagonismo durante e após a chamada República Velha.
Especulando, não havia por aqui o terreno fértil de São Paulo, que crescia economicamente sua indústria com os excedentes de uma pujante cafeicultura, do Rio de Janeiro, já a Metrópole à Beira-Mar de um milhão de habitantes, e de Cataguases, com suas circunstâncias específicas para ser vanguarda literária.
E nisso nem há demérito, pois a cultura era fomentada na cidade, com a inauguração do Museu Mariano Procópio em 1921, do Cine-Theatro Central em 1929, e com incrementos na sétima arte, como a Carriço Film.
Todavia, demorou mais um tempo para sermos modernos e, nas décadas de 40, 50 e 60, na segunda onda do modernismo, a arquitetura trouxe um traço modernista para a cidade com obras de Niemayer e de Arthur Arcuri.
E na pintura, Di Cavalcanti, que estava na Semana de 22, deixou-nos duas de suas obras, enquanto os Brachers davam as primeiras pinceladas naquele ambiente mágico regido por Waldemar Bracher no emblemático “castelinho” da família no Granbery.
Em 1966, tivemos o “I Festival do Cinema Nacional de Juiz de Fora”, assimilando-se a contracultura na terceira onda modernista.
No mesmo ano surgiu a “Galeria de Arte Celina”.
Nas décadas de 70 e 80, a poesia juiz-forana, já assumidamente modernista, intensifica-se a partir de vários movimentos como Poesia, Abre-alas, Bar Brazil e D’Lira, tendo entre os poetas da nova geração José Henrique da Cruz (Mutum), Walter Sebastião, Edimilson de Almeida Pereira, José Santos, Vanderlei Tomaz, Fernando Fábio Fiorese Furtado, Luiz Guilherme Piva, Luiz Augusto Knopp de Mendonça (Knorr) e Iacyr Anderson de Freitas.
Chega-se a um momento em que as várias expressões artistas estão articuladas, uma das pretensões da Semana de Arte Moderna de 22.
Assim, não é que jamais tenhamos sido modernos, mas a verdade é que demoramos um pouco mais a ser.
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