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Desde quando chuva é tragédia?

Bombeiros realizam buscas por desaparecidos após deslizamento de encosta em Petrópolis (Foto: TV Brasil)

Tá chovendo pra caramba. Do céu cai água, dos morros caem pessoas. Em todas as plataformas chove notícia sobre isso, sobretudo de Petrópolis. Mais do que casas, perdem-se vidas. Nada disso, no entanto, é trágico. Alguns estudiosos têm algo a dizer sobre o assunto.

Aristóteles afirma que, pra ser uma tragédia, a história precisa lidar com personagens elevados. Os que são entrevistados por jornalistas, de elevados só tinham os lares que desceram o morro com a lama. São pessoas de valor, no mais das vezes trabalhadoras que demoraram anos na construção da casa que nem era tão grande, mas era própria. Era: pretérito imperfeito.

George Steiner tem um livro que se chama A morte da tragédia. Se ela morreu, por que tá estampada nas manchetes chuvosas? Steiner fala de uma dor incontornável, um sofrimento que não comporta reparação. Peraí! Cadê aquela nobreza grega, elevada? Ah, sim, um pouco adiante, quando ele diz que as tragédias terminam mal (tá, que óbvio), e continua: “O personagem trágico é rompido por forças que não podem ser completamente compreendidas nem superadas pela prudência racional”.

Aí é que tá o busílis! Não temos mesmo tragédia em Petrópolis ou onde mais choveu, porque ali as forças podem ser explicadas. Ele mesmo entende isso ao escrever que é drama, e não tragédia, quando existe alguma solução razoável pro problema. Razoável talvez seja uma palavra pesada pra quem perdeu casa e família, mas, se o contexto for mais amplo que as últimas semanas de chuva, nem é.

O filósofo e estudioso do teatro Henri Gouhier (obrigado, Malu!) disse que a última tragédia se soma ao drama, sendo as duas madeiras da cruz de Cristo. Dali em diante, a divindade não interveio mais. E se Deus morreu (aqui já é Nietzsche), são duas as hipóteses: essa chuvarada é culpa de um livre arbítrio sacana de São Pedro, um homem de pouca fé; ou a responsabilidade por todas essas mortes cai no colo do próprio ser humano.

Peter Szondi ajuda a entender isso porque no livro Ensaio sobre o trágico ele tem uma definição mais próxima da realidade atual. Ele afirma que o trágico se faz presente caso “os deuses proporcionem sorte terrível ao homem, mas que este terrível ocorre pela própria ação humana.” Fala do caráter elevado, como Aristóteles, mas também da destruição e da ruína como requisitos pro trágico, assim como da ferida que não cicatriza.

Quanta coisa de hoje pra ser negada pelos conceitos de ontem… Conceitos dos estudos literários e filosóficos, de estudiosos da dramaturgia, é importante deixar claro. Se no teatro o conceito de tragédia é bem definido, mesmo com alguns embates entre autores, na imprensa serve pra evitar usar outro, ainda mais claro: omissão.

Todo ano (e já falamos disso aqui na coluna) vem chuva que leva casas, que leva vidas. Engraçado (um jeito irônico de usar o adjetivo) perceber que casas vêm geralmente antes de vidas nas chamadas dos telejornais. Vida todo mundo tem, casa própria é sonho e programa de governo desde muito tempo. De alguns governos.

Tanto na região de Petrópolis quanto em Juiz de Fora, que virou berlinda da previsão do tempo no final da semana, casas caem e não é de hoje. O poder público parece se esquecer disso. Nem dá pra culpar os atuais governantes, porque Margarida, Zema e Bolsonaro pouco podem ter feito sobre o assunto nos 13 ou 37 meses que governaram, mas podem ajudar a resolver o problema pra depois. E aí vem outra questão: o depois.

Como no teatro, se o protagonista morre no primeiro ato, algo maior que ele precisa surgir depois. É como o plano de desenvolvimento urbano deixado pelo prefeito Tarcísio Delgado e largado de lado pelos que vieram depois. Pensar uma cidade (ou um estado ou um país) requer tempo. Quem está na chefia do Executivo precisa ver quem lá esteve e ser respeitado por quem lá estará. Que os atuais pensem nisso, porque o drama segue sendo chamado de tragédia no palco da omissão. Ao contrário do teatro, quem morre não começa de novo no dia seguinte quando as cortinas são abertas.